Regimes de sentido e de interação
nas práticas brasileiras de marketing e comunicação

Valdenise Leziér Martyniuk

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Texte intégral
Note de bas de page 1 :

 João Ciaco, A inovação em discursos publicitários: comunicação, semiótica e marketing, São Paulo, Estação das Letras e das Cores, 2013. João Ciaco é diretor de publicidade e marketing de relacionamento da Fiat Automóveis para a América Latina, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.— Luís Pessôa, Narrativas da segurança no discurso publicitário : um estudo semiótico, São Paulo,Editora Mackenzie, 2013. Luís Pessôa é professor e pesquisador do Departamento de administração da PUC-Rio, doutor em Letras na área de estudos lingüísticos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e tem vasta experiência nas áreas de comunicação e marketing.

Note de bas de page 2 :

 O primeiro sob a orientação da Profa Ana Claudia de Oliveira (PUC-SP) ; o segundo da Profa Diana Luz Pessoa de Barros (Universidade Mackenzie)

Talvez tenha sido uma coincidência.No dia seis de novembro de 2013 foram lançados no Brasil dois livros muito próximos : um em São Paulo, de João Ciaco, A inovação em discursos publicitários, outro no Rio de Janeiro, de Luís Pessôa, Narrativas da segurança no discurso publicitário1.  O primeiro aborda o cenário do setor automotivo, o segundo tem como foco o mercado de seguros ; um é escrito por um grande executivo, outro por um professor de pós-graduação com larga experiência profissional. Ambos os títulos oferecem aos leitores a oportunidade de compreender as relações entre empresas e consumidores para além de uma simples troca comercial, mas como uma transação de sentidos construídos nas práticas publicitárias e mercadológicas.  E os dois, enquanto obras reorganizadas a partir de teses de doutorado2, se amparam na sociossemiótica.

Note de bas de page 3 :

 Cf. Eric Landowski, Les  interactions risquées, Limoges, PULIM, 2005. (Tr. esp., Interacciones arriesgadas, Lima, Fondo Editorial de la Universidad de Lima, 2009).

Note de bas de page 4 :

 Cf. Jean-Marie Floch, Sémiotique, marketing et communication : sous les signes, les stratégies, Paris, PUF, 1990.

Luís Pessôa debruça-se sobre os discursos publicitários da indústria de seguros, analisando anúncios publicados num período de mais de três décadas. O livro desvela faces da utopia de segurança, da qual a publicidade faz uso. Deixa ver como o medo, sentimento natural na vida social, vai tomando diferentes figurativizações ao longo do tempo. A metodologia de reflexão e análise repousa na teoria dos regimes de sentido e de interação de Landowski, cuja base está em perfeita conformidade com o objeto — segurança e risco3. O autor retoma também o trabalho de Floch e identifica nos anúncios não somente os valores práticos (ou “de uso”) em oposição aos valores utópicos (ou “de base”), mas também os valores críticos (a relação custo x benefício) e lúdicos (a exclusividade)4.

Com base nessa metodologia, Pessôa constrói o que chama de “pequena mitologia da família brasileira”, dando a ver como o emprego do modelo norteia a compreensão dos fenômenos sociais. Predominam nas relações intersubjetivas observadas os papéis temáticos do pai e da mãe (protetores e provedores), em narrativas centradas no regime da programação, euforizando a prudência. Ainda na dêixis da prudência, há narrativas características da manipulação, que mantêm uma visão estereotipada, não mais da família, mas do indivíduo, tendo como principal protagonista a mulher, numa valorização da independência feminina. Na dimensão do regime de sentido e de interação do acidente, está posicionado o papel temático do indivíduo inovador, do comprador de seguro sujeito aos riscos inerentes à vida – perder o emprego, divorciar-se, morrer... Na posição de ajustamento, há espaço para o discurso de uma família feliz, não por respeitar um padrão de comportamento esperado da unidade familiar, mas que se ajusta aos acontecimentos quotidianos, um membro da família às decisões de outros, em harmonia entre iguais.

Ao lado da mitologia da família, o autor constrói a mitologia envolvida na posse de um veículo.  Ele encontra não apenas estereótipos que euforizam a segurança, mas modos de comportamento que aventam a possibilidade de risco. A análise de Pessôa, portanto, dá a ver os simulacros de identidades que os consumidores tem de si mesmos, os quais os motivam a aderir a uma ou outra companhia seguradora que partilhe desses sistemas de valores. Da oposição de base “vida versus morte”, categoria fundamental do conjunto dos anúncios, temos que na euforização da vida, os sujeitos procuram controlar o incontrolável, dar aos filhos a vida após sua morte, ter garantido o seu sustento diante das imprevisibilidades do destino e dos riscos aos quais se expõe voluntariamente — valores contemporâneos de indivíduos pautados pelo hedonismo, pela satisfação, pelo poder e pelo consumo. Para além da óbvia necessidade de segurança, há uma constante volição pela aventura. Nas palavras do autor :

[...] a busca pela proteção e segurança, conforme retratada no discurso publicitário, pode ser interpretada como um circuito contínuo entre os quatro regimes de interação : a fuga do acidente, a entrada na manipulação com tendências à programação e, por fim, a possibilidade do ajustamento, com riscos de volta ao acidente. (p. 207)

A aventura (por oposição à prudência), além de categoria de base da oposição que fundamenta os regimes de sentido e de interação é uma constante temática da atualidade no discurso publicitário.


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Note de bas de page 5 :

 Conforme conceituação de Andrea Semprini, A Marca Pós-Moderna. Poder e fragilidade da marca na sociedade contemporânea, trad. de Elisabeth Leone, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2006.

A indústria automotiva, um dos motores da economia brasileira, é profundamente analisada no livro de João Ciaco, Inovação em Discursos Publicitários. Sustentado por um vasto conhecimento do mercado de automóveis, ele constrói uma trajetória que discute importantes questões do cenário contemporâneo do marketing. Explica e analisa como a publicidade de multimeios, na qual um conceito criativo é replicado em várias mídias, difere das novas ações cross media alicerçadas na idéia que em cada mídia poderá haver uma construção diferente, campanhas informativas, persuasivas e institucionais convivendo simultaneamente e gerando múltiplas interações não lineares com os grupos de consumidores. Essa procura por práticas diferenciadas é sintomática e reitera o estatuto das marcas na sociedade e o modo pelo qual estas entidades abstratas são tomadas como identidades em interação com os vários segmentos de mercado.  Mais especificamente, o autor desdobra as estratégias publicitárias que navegam em torno da temática do novo no discurso publicitário (incluindo obviamente palavra e imagem, assim como palavra, som e imagem, para formar o “texto” sincrético), bem como nos produtos da indústria, no design dos próprios automóveis.  Ele dá a ver deste modo diferentes concepções de uma “inovação” discursivizada que, na maioria das vezes, é vazia de ruptura mas se institui como axiologia do momento presente, vivido, sintoma do hedonismo pregado pelas marcas pós-modernas5.

A análise realizada por Ciaco, assim como o trabalho de Pessôa, se baseia nas postulações de Landowski sobre os regimes de sentido e de interação.  Procedimentos programados, rotineiros e estratégias manipulatórias de persuasão correspondem às práticas elaboradas na conceituação de multimeios, sob a constelação da prudência, ou seja, da segurança. Dependem ao contrário da dimensão do risco e da “aventura” as interações nas quais os sujeitos, simulacros dos consumidores, atuam segundo competências estésicas ou mesmo da ordem do aleatório, fazendo acontecer produções de sentido que escapam do controle do sujeito-marca, mas que, em contrapartida, promovem aproximações e intimidade entre marcas e consumidores. Nesse caso, as comunicações cross media melhor se adequam, dado que há por definição certa imprevisibilidade das relações nos processos de acidente e de ajustamento. Não se sabe ao certo a quais manifestações os consumidores irão aderir ; as peças publicitárias podem sofrer alterações ; e uma mídia pode ser mais incentivada que outra, de acordo com o acompanhamento das vivências.

Note de bas de page 6 :

 João Ciaco, “Estratégias de marketing, estratégias de sentido”, in Ana Claudia de Oliveira (org.), As Interações Sensíveis. Ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski, São Paulo, Estação das Letras e Cores e Editora do CPS, 2013, pp. 653-670. Na mesma perpectiva, cf. Jean-Paul Petitimbert, “Entre l’ordre et le chaos : la précarité comme stratégie d’entreprise”, Actes Sémiotiques,  116, 2013.

Acidente e ajustamento : Ciaco já se valeu desses conceitos anteriormente para categorizar, não o discurso da publicidade, mas a própria conduta das organizações em relação aos seus concorrentes, instaurando padrões de comportamento correspondentes aos regimes de sentido e de interação6. Empresas responsivas seriam as que atuam segundo a previsibilidade dos movimentos do mercado e da concorrência (regime de programação) ; empresas repentinas englobam aquelas de comportamento errático e casual, que sempre procuram surpreender, sem possuir uma orientação linear de conduta (regime do acidente) ; empresas seletivas, as mais competitivas que procuram persuadir seus consumidores em detrimento da ação concorrencial (regime de manipulação) ; e empresas adaptativas, que em geral seguem com um certo atraso os movimentos da concorrência, procurando ajustar-se ao cenário (regime de ajustamento). Não cabe aqui comentar se uma ou outra estratégia é mais eficaz ou lucrativa, até mesmo porque tais resultados são dependentes de um grande número de fatores e do contexto específico de atuação, mas servimo-nos desse exemplo para mostrar a operatividade do modelo, não apenas para a análise da publicidade e das expressões diversas das marcas nas situações de experiências vividas pelos consumidores, mas nas interações de toda sorte, cuja escolha depende do sistema de valores que conduz o comportamento de qualquer sujeito.

Fica evidenciada nas análises de Ciaco a dialética do novo e das estratégias de inovação. Muito embora a construção de novidades seja um imperativo para manter a competitividade, no âmbito das indústrias de automóveis, bens duráveis em si, os valores perduram. “Negam-se as rupturas e as mudanças”, afirma o autor. Nos deparamos assim com duas identidades : a da marca e a do consumidor. Não uma só, mas correspondentes no compartilhamento da axiologia. Nem herméticas nem fixas, pois estão inseridas no contexto social, em uma vasta rede de informações e trocas, que as contaminam num fazer contínuo. O fazer tático constrói a significação estratégica ou, no modelo construído por Semprini, um projeto de marca realiza-se por suas manifestações :

Note de bas de page 7 :

 Andrea Semprini, A Marca Pós-Moderna – poder e fragilidade da marca na sociedade contemporânea, trad. de Elisabeth Leone, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2006, p. 183.

“(...) a marca é definida como uma instância enunciativa. É o processo de enunciação que lhe permite passar de um estado abstrato e virtual ao estado concreto de manifestação. Definimos o nível da enunciação como projeto de marca e aquele dos enunciados produzidos como manifestações de marca. Lembramos também que as manifestações de segundo nível não devem ser reduzidas à comunicação de projeto de marca (...). Em nosso modelo, a vasta panóplia de instrumentos de comunicação de marca é considerada como uma série de suas manifestações, situando-se no mesmo plano teórico e metodológico das outras manifestações, como os produtos, o preço, as práticas de interação ou os modos de distribuição.”7

No trajeto descrito acima está a diferenciação entre a ação do marketing e a da publicidade, ou mesmo de seu conjunto de ferramentas de comunicação, assim como fica claro nas análises de Pessôa e Ciaco. Enquanto o marketing guarda sua visão generalista da ação da marca, a publicidade está na esfera da comunicação. Ambos mantém a visão estratégica e durativa, mas seu escopo é distinto. Não é apenas a comunicação que produz sentido, mas todo o conjunto de experiências vividas pelos consumidores com as marcas e a respeito delas, vivências essas proporcionadas ou não pelos gestores das marcas.


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Note de bas de page 8 :

 Empresas brasileiras tem recorrido à consultoria semiótica para análise dos efeitos de sentido que emergem nas estratégias de marketing, como nos casos de lançamentos de produtos, atividades de gestão do branding, análises de potenciais perfis de consumidores, análises de pontos de vendas, embalagens, mídias, campanhas publicitárias, segmentação e marketing de relacionamento. A principal semioticista brasileira nessa área é Ana Claudia de Oliveira, que atende a grandes corporações. Outras empresas, como A/F Inteligência de Mercado Ltda. oferecem a pesquisa semiótica em colaboração com outras metodologias, dentro de suas respectivas especificidades. Abrem-se também desse modo oportunidades para a atuação de semioticistas em empresas de pesquisa de mercado.

O compartilhamento dessas preocupações manifesta-se em demandas de grandes empresas por consultoria semiótica8 e em eventos que mobilizam as esferas acadêmica e mercadológica, interdependentemente. Um bom exemplo, no Brasil, é o encontro anual SIEP — Seminário Internacional de Estudos e Pesquisas em Consumo. Sua primeira edição se deu em 2011, com um tema centrado nas práticas e narrativas do consumo, dando a ver a importância da idéia de intersubjetividade. Em 2012, os debates tinham como foco a dimensão afetiva e os vínculos construídos nas práticas de consumo que tomam lugar principalmente no espaço urbano. Em 2013, os debates desenvolveram-se sob o título Experiência e Sentido. Nos três dias de debates, mesas redondas, oficinas interativas, visitas a pontos de consumo de rua monitoradas por semioticistas especialistas em moda e vitrinismo, entre outras atividades, o evento envolveu tanto pesquisadores e estudantes, quanto executivos e diversos profissionais da área no Brasil e no exterior. O que foi condutor dos eventos é a concepção do consumo como prática significante. Tanto nas apresentações dos profissionais (sobre as inovações nas estratégias publicitárias, criativas, promotoras de engajamento, tematizadas pela sustentabilidade e pelo envolvimento sensorial dos consumidores) quanto nas formulações teóricas dos estudiosos da comunicação e da semiótica (sobre as tecnologias de comunicação, as interações intersubjetivas, as relações com a cultura, as experiências inteligíveis e sensíveis, as considerações sobre o espaço), o estudo da dinamicidade das relações apresentou-se como uma necessidade.

Assim, semiótica e marketing ajustam-se nas práticas comerciais e de pesquisa acadêmica. A teorização e a metodologia analítica que provêm do estudo dos regimes de sentido e de interação apontam como uma estrutura geral para a compreensão do sentido do viver em sociedade, respaldado na ação mercadológica. Esse movimento alcança hoje um país carente de soluções e farto em possibilidades, povoado e conhecido por sua personalidade acolhedora (de culturas, idéias, pessoas, empresas). Essa característica da sociedade brasileira, na perspectiva da atividade de marketing, pede movimentações de igual intensidade, de marcas que mesmo mantendo sua identidade no regime de programação, sejam capazes de atualizar seus discursos em ajustamento com os consumidores.

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