Migrante empreendedor, migrante influencer: cidadanias precárias em tempos neoliberais Migrant entrepreneur, migrant influencer: precarians citizenships in neoliberal times

Sofia Zanforlin 
y Júlia Lyra 

https://doi.org/10.25965/trahs.5075

Este artigo considera processos de midiatização e sua relação com a mobilidade humana em tempos de agudização do neoliberalismo no Brasil e na América Latina. O objetivo desta proposta é entender esses fenômenos como parte de um processo comunicacional e contextual em que o migrante passa a ser formatado discursiva e subjetivamente em uma pedagogia neoliberal que estimula a gestão de si como empresa, onde o indivíduo precisa trabalhar e aprimorar a si mesmo para negociar seu pertencimento no país. No estudo em tela, migrantes mobilizam seus costumes e experiências das trajetórias como uma das estratégias assumidas na busca por inserção e ascensão sociolaboral na sociedade receptora. O que observamos é que as soluções criadas para dar conta das dificuldades relacionadas à adaptação e inserção no país estão sendo individualizadas, vistas como dependentes da disposição para o trabalho, do esforço e mérito de cada um e, portanto, contribuindo para esvaziar o caráter intrinsecamente político do migrante e das migrações.

Cet article examine les processus de médiatisation et leur relation avec la mobilité humaine en période d'aggravation du néolibéralisme au Brésil et en Amérique latine. Son objectif est de comprendre ces phénomènes comme faisant partie d'un processus communicationnel et contextuel dans lequel le migrant devient discursivement et subjectivement formaté dans une pédagogie néolibérale qui encourage la gestion de soi comme une entreprise, où l'individu doit travailler et s'améliorer pour négocier son appartenance au pays. Dans notre étude, les migrants mobilisent leurs coutumes et leurs expériences de trajectoires comme une des stratégies assumées dans la recherche d'insertion et d'ascension socio-professionnelle dans la société d'accueil. Ce que nous observons c’est que les solutions créées pour rendre compte des difficultés liées à l'adaptation et à l'insertion dans le pays sont individualisées, considérées comme dépendant de la volonté de travailler, de l'effort et du mérite de chacun et, par conséquent, contribuant à vider de son sens le caractère intrinsèquement politique du migrant et des migrations.

Este artículo considera los procesos de mediatización y su relación con la movilidad humana en tiempos de exacerbación del neoliberalismo en Brasil y América Latina. Su objetivo es comprender estos fenómenos como parte de un proceso comunicacional y contextual en el que el migrante se formatea discursiva y subjetivamente en una pedagogía neoliberal que fomenta la autogestión como empresa, donde el individuo necesita trabajar y superarse para negociar su pertenencia en el país. En nuestro estudio, los migrantes movilizan sus costumbres y vivencias de las trayectorias como una de las estrategias asumidas en la búsqueda de inserción y ascenso sociolaboral en la sociedad receptora. Lo que observamos a través del estudio de caso discutido es que las soluciones creadas para enfrentar las dificultades relacionadas con la adaptación e inserción en el país están siendo individualizadas, vistas como dependientes de la voluntad de trabajo, el esfuerzo y el mérito de cada uno y, por lo tanto, contribuyendo a desinflar el carácter intrínsecamente político de los migrantes y las migraciones.

This article considers mediatization processes and their relationship with human mobility in times of exacerbation of neoliberalism in Brazil and Latin America. The objective of this proposal is to understand these phenomena as part of a communicational and contextual process in which the migrant becomes discursively and subjectively formatted in a neoliberal pedagogy that encourages self-management as a company, where the individual needs to work and improve himself. to negotiate their belonging in the country. In the study on screen, migrants mobilize their customs and experiences of the trajectories as one of the strategies assumed in the search for insertion and socio-occupational ascension in the receiving society. What we observe through the case study discussed is that the solutions created to deal with the difficulties related to adaptation and insertion in the country are being individualized, seen as dependent on the willingness to work, the effort and merit of each one and, therefore, contributing to deflate the intrinsically political character of migrants and migrations.

Índice
Texto completo

Introdução

Note de bas de page 1 :

Sobre o tema, ver https://www.infomoney.com.br/patrocinados/canal-do-empresario/a-favor-da-diversidade-ceo-da-bayer-luta-contra-a-discriminacao-no-ambiente-corporativo/ acessado em 16 de agosto de 2022.

Note de bas de page 2 :

Sobre a relação entre diversidade e empresas, ver https://forbes.com.br/forbesesg/2021/06/especial-afrofuturo-investir-em-diversidade-e-a-coisa-inteligente-a-se-fazer/ acessado em 16 de agosto de 2022.

Note de bas de page 3 :

A Migraflix é uma ONG que fomenta empreendedorismo migrante. Um dos serviços prestados é o de palestras motivacionais. Para saber mais: https://www.migraflix.com.br.

Em um auditório lotado de funcionários da Monsanto, então comprada pela empresa transnacional Bayer1, inicia-se o evento da Semana da diversidade2 promovida pela empresa. O ano era 2018 e uma das pesquisadoras fora indicada pela ONG objeto de sua pesquisa, a Migraflix3, para ser a personagem designada como especialista. O evento havia sido dividido entre uma representante do campo acadêmico, o diretor da ONG que trabalha pela inclusão financeira de migrantes, e a fala da refugiada, no caso, vinda de Angola. Antes do evento, em uma sala destinada ao café da manhã dos convidados, ouve-se a motivação para a criação da semana: a Bayer, ciente da má reputação angariada pela marca Monsanto, associada ao uso de agrotóxicos na agricultura extrativista, decide então pelo rebranding, isto é, trabalho de marketing associado a ações culturais para promover, ou convencer, de que há uma mudança em curso. Uma breve busca pela Internet, é possível perceber que o recurso à diversidade para ações que indiquem compromissos sociais por parte de empresas parece ser estratégia consolidada no mundo corporativo.

Deixando a empresa promotora de lado, o que nos surpreendeu naquele momento foi a desenvoltura da refugiada no palco do auditório. Questionado sobre se a refugiada havia recebido algum tipo de treinamento, Jonathan Berezovsky, diretor do Migraflix, confirmou que todos os migrantes que estão designados para palestras motivacionais na ONG, são treinados por um coach e um preparador de oratória. A apresentação da refugiada, naquele dia, traçava uma linha cronológica que começava pela infância pobre, ilustrada por uma foto projetada no telão de uma criança negra pulando uma vala que sugere ser de esgoto, para ir a um barracão, onde se supõe ser sua casa. A sequência termina com o processo de migração, a chegada ao Brasil, as dificuldades enfrentadas, e a redenção, ou superação, quando se volta para o presente e relata que está realizando um sonho ao ser maitre de um restaurante famoso em São Paulo, enquanto estuda gastronomia. A palestra termina com um conselho: nunca desista dos seus sonhos.

A mensagem da palestra da refugiada pode ser resumida por uma fórmula, ou pela narrativa do herói, aquele que consegue superar as intempéries da vida e ressurgir tendo realizado o sonho de uma vida. Grosso modo, podemos apontar essa sequência de eventos como um padrão generalizado, em que podemos localizar as narrativas individuais contemporâneas, onde o indivíduo consegue superar dificuldades, e, com resiliência, força e garra, realizar seus sonhos (Casaqui, 2021). Essa fórmula representa a ideologia discursiva no neoliberalismo: aposta na individualização, na performance e na narrativa vencedora. Porém, perguntamos, como isso chegou ao universo das migrações e do refúgio?

Este artigo pretende considerar os processos de midiatização e sua relação com a mobilidade humana em tempos de agudização do neoliberalismo no Brasil e na América Latina. Por midiatização pensamos “a articulação da vida social com os dispositivos de mídia” (Sodré, 2012), no contexto contemporâneo vinculado à financeirização da sociedade e defesa do Estado mínimo, que acarreta a diminuição da execução de políticas públicas de acolhimento a migrantes e refugiados, neste âmbito específico.

A mobilização de diversos atores sociais na causa da integração econômica de migrantes – que reúne entidades da sociedade civil como Organizações não Governamentais, ONGs, às humanitárias como a Agência da ONU para Refugiados, a ACNUR, e as corporações capitalistas transnacionais, no caso das redes sociais – mediada pelo ecossistema midiático contemporâneo, nos aproximou do conceito de “bios virtual ou midiático” desenvolvido por Muniz Sodré (2014). Para o autor, o bios virtual ou midiático “implica uma “totalidade espacial virtualizada ou um fato social total” (p.142), ou ainda, “uma espécie de clave virtual aplicada à vida cotidiana, à existência real histórica do indivíduo” (p. 143). Nesse contexto, a mídia passa a ser compreendida não apenas pelo seu aparato tecnológico e informacional, mas também como componente fundamental de práticas socioculturais e subjetivas na contemporaneidade.

Propomos analisar dois fenômenos interligados que nos parecem exemplares desse processo: primeiro, o encaminhamento do empreendedorismo migrante, ancorado aos usos das redes sociais como articuladoras dos processos de divulgação e compra e vendas dos produtos de seus negócios, e, segundo os usos destas plataformas por migrantes aspirantes a influenciadores. Nos dois casos, a retórica inspiracional molda a forma de se comunicar, seja no sentido da promoção dos produtos, geralmente vinculados às culturas de origem dos migrantes, bem como no conteúdo dos canais dos influenciadores.

Nossa hipótese é de que os processos de negociação de pertencimentos contemporâneos passam a ser elaborados a partir da prerrogativa do desempenho e da performance, em que a história pessoal do migrante – no caso, a experiência da mobilidade como empreendimento e de seu pertencimento como resultado do trabalho árduo de resiliência e superação – pode se configurar como um caminho para mobilizar afetos, conquistar atenção nas redes sociais e moldar seu pertencimento no país, pela via do bom trabalhador, do empreendedor, aquele que não pesa ao Estado. O migrante é estimulado a transformar sua condição social e econômica por si mesmo, sem a contrapartida estatal, na forma de políticas públicas voltadas para a inserção dessa população no mercado de trabalho. Para o migrante, a alternativa de empreender se coaduna com retrabalhar atributos pessoais e culturais do seu país de origem. Dessa forma, se tornando ele próprio um produto de consumo.

O objetivo deste artigo, portanto, é entender esse fenômeno como parte de um processo comunicacional em que o migrante passa a ser formatado discursiva e subjetivamente em uma pedagogia neoliberal que estimula a gestão de si como empresa (Zanforlin, Amaral, 2019), onde o indivíduo precisa trabalhar e aprimorar a si mesmo para negociar seu pertencimento no país. No caso dos migrantes, mobilizar seus costumes às trajetórias passa a ser uma das estratégias assumidas na busca por inserção e ascensão sociolaboral na sociedade receptora. O que observamos é que as soluções criadas para dar conta das dificuldades relacionadas à adaptação e inserção no país estão sendo individualizadas, vistas como dependentes da disposição para o trabalho, do esforço e mérito de cada um e, portanto, contribuindo para esvaziar o caráter intrinsecamente político do migrante e das migrações.

O trabalho da Comunicação e a FORMAÇÃO DO MIGRANTE EMPREENDEDOR

Em trabalhos anteriores (Zanforlin & Amaral, 2019; Zanforlin & Grohmann, 2022), discutimos a relação do conceito de capital humano, fundamental para entender o neoliberalismo, com as migrações, como elaborado por Foucault em O Nascimento da biopolítica (2010). O autor recorre aos migrantes para ampliar a ilustração do conceito a partir de um dos traços que se somam para a moldura do capital humano, a mobilidade: “É preciso também avaliar, nos elementos constituintes do capital humano, a mobilidade, ou seja, a capacidade de um indivíduo se deslocar, e em particular a migração” (p. 291). Foucault explica que se a migração representa um custo, ela é também um investimento:

A migração é um investimento, o migrante é um investidor. É um empresário de si mesmo que faz algumas despesas de investimento para obter um certo melhoramento. A mobilidade de uma população e a capacidade que esta tem para fazer escolhas de mobilidade, que são escolhas de investimento para obter um melhoramento dos rendimentos, permite reintroduzir estes fenômenos, não como efeitos puros e simples de mecanismos econômicos que extravasariam os indivíduos e que, de certa maneira, os ligariam a uma imensa máquina que não controlariam; permite analisar todos estes comportamentos em termos de empresa individual, de empresa de si mesmo com investimentos e rendimentos (Foucault, 2010: 291).

A noção de “capital humano”, como formulada por Foucault (2010), é fundamental para o entendimento do neoliberalismo e suas relações com o trabalho. Para o autor, o capital humano seria formado de elementos inatos e elementos adquiridos; mas, para efeitos econômicos, os usos desses elementos passam a ter pertinência na medida em que se constituem como recursos raros para um determinado fim, isto é, “o capital humano poderá ser, em primeiro lugar, melhorado e, em segundo, conservado e utilizado durante o máximo tempo possível” a fim de formar uma “competência-máquina” (p. 290). A relação entre neoliberalismo e subjetividades foi tratada por Foucault (2010), que é referência para esta discussão e ponto de partida de Dardot e Laval (2016).

Para Foucault (2010), a noção de neoliberalismo como paradigma justifica a implementação de uma nova racionalidade, baseada na diminuição do papel do Estado, numa divergência ao conceito de Estado de bem-estar social em favor da lógica de livre concorrência centralizada pelo mercado e da reconfiguração do trabalho. Dardot e Laval ressaltam ainda que o neoliberalismo “estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade ‘contábil’ pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos” (2016: 30).

O migrante como empresário de si mesmo, como empreendedor/a, tem sido objeto de pesquisa de uma das autoras, que, desde 2015, tem acompanhado a introdução do tema do empreendedorismo para migrantes, tanto como uma “saída” para a inclusão financeira à sociedade receptora, como um sintoma de uma formação discursiva contemporânea, em que prevalece a redução da atuação do Estado, a precariedade das condições de trabalho, e a crescente perda de direitos dos cidadãos como um todo. A pesquisa identificou a inserção do tema de diversas maneiras, desde o treinamento a partir de cursos, como também pela recomendação assumida pelo Acnur e ONU, no relatório de Tendências Globais (Ver Zanforlin, Amaral, 2019). O estímulo ao empreendedorismo como solução para integrar os migrantes economicamente passou a ser pauta da agenda da Organização das Nações Unidas (ONU), em documento de 2016.

A ideia é de convocar a sociedade civil e empresas privadas para participação ativa na gestão das causas humanitárias. Tal discurso encontra eco no cotidiano dos migrantes e refugiados em busca de um lugar na nova sociedade, na necessidade rápida de geração de renda para si e sua família e na negociação cotidiana pela relativização da sua vulnerabilidade. Neste contexto de cidadania sacrificial (Brown 2018), as organizações que trabalham com migrantes são as portadoras de discursos humanitários e em relação ao bem comum, enquanto os migrantes são aqueles que precisam se sacrificar em prol de um bem maior em um cenário de políticas de austeridade, convertendo-se em “sujeitos governados por coleções de máximas normativas, vulneráveis aos perigos da vida e prontos a legitimar sacrifícios” (Brown, 2018: 7). O migrante empreendedor passa a ser aquele a quem não mais se teme, mas o sujeito que vem somar-se à sociedade acolhedora como bom trabalhador. Não aquele que espera da nova sociedade, mas aquele que coopera para o seu bom desempenho.

Nesse caminho, Byung-Chul Han assinala uma mudança de premissa para analisar a sociedade contemporânea no livro A sociedade do cansaço (2017). O autor discorre sobre o que considera as características mais marcantes do nosso tempo, o desempenho, a exaustão e o excesso de positividade: “São estados patológicos devidos a um exagero de positividade. (...) A violência da positividade que resulta da superprodução, superdesempenho ou supercomunicação já não é mais “viral”” (Han, 2017:14-16). Para o autor, o conceito foucaultiano de sociedade disciplinar, ou de controle, não dá conta de descrever as modificações “psíquicas e topológicas” que se realizaram com a mudança da sociedade de desempenho. A sociedade do desempenho se desvincula da negatividade da proibição para o poder ilimitado da positividade: “No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. (...) A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever” (Han, 2017: 24-25).

É assim que, segundo Han, o inconsciente social do dever troca de registro, e nessa lógica, seus habitantes “não se chamam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos” (Idem:23). Esses cidadãos-empresários-de-si, estariam em sintonia com a prédica do estado mínimo de direitos para o estado gestor, pensado nos moldes de uma empresa privada, em que cidadania passa a ser uma conquista individual, onde somos todos consumidores e concorrentes, e não mais baseada em um Estado da solidariedade (Canclini, 1995; Brown, 2018).

Enquanto o ideal liberal clássico de autonomia e liberdade individual é explorado pelo processo neoliberal de delegação do poder decisório, operacionalidade e responsabilidade aos indivíduos, esse mesmo ideal é esvaziado à medida que a desregulamentação elimina os diversos bens públicos e benefícios de segurida- de social, desata os poderes do capital corporativo e financeiro, e desmantela aquela clássica solidariedade, própria do século XX, entre trabalhadores, con- sumidores e eleitores. O efeito combinado é a geração de indivíduos extremamente isolados e desprotegidos, em risco permanente de desenraizamento e de privação dos meios vitais básicos, completamente vulnerá- veis às vicissitudes do capital. (Brown, 2018: 8)

Por sua vez, é por meio do trabalho comunicacional que, em uma dimensão, organiza as relações entre ONGs e migrantes a partir da circulação de narrativas de empreendedorismo e bem comum (Casaqui, 2019) com sentidos humanitários, transformando a crescente individualização e degradação das condições de trabalho em sentimentos de oportunidades e autonomia. Em uma dimensão ainda mais ampla, a Comunicação sedimenta ideologicamente a financeirização (Sodré, 2019) e entrelaça o trabalho à racionalidade neoliberal (Grohmann & Qiu, 2020). É com a centralidade do trabalho da Comunicação que os migrantes são transformados discursivamente em empreendedores, carregando todas as inseguranças e responsabilidades pelos fracassos no âmbito do trabalho.

Este movimento é complementado por Sodré pela noção de sociedade midiatizada, caracterizada pelo autor pela “flexibilização das relações de produção e a fragmentação dos tempos de trabalho no quadro da inflexão do sistema produtivo para o chamado capital humano” (Sodré, 2014: 140), traduzida como uma figura do capitalismo dito cognitivo. Também nesse caminho, Stuart Hall (1997: 33) ressalta que “a cada momento particular, o funcionamento da economia depende da formação discursiva da sociedade”. Com essa afirmação, o autor não pretende “culturalizar” os processos econômicos, ou reduzi-los ao discurso e à linguagem, mas “significa que a dimensão discursiva ou de significado é uma das condições constitutivas do funcionamento da economia. O ‘econômico’ não poderia funcionar nem teria efeitos reais sem a ‘cultura’ ou fora dos significados e dos discursos” (1997: 33-34). O que se quer afirmar a partir das citações acima é que o trabalho de conversão de cidadania a empresário de si só é possível porque coexiste com um trabalho discursivo e cultural, transformando a discussão em tela em um fenômeno comunicacional.

Assim, por fenômeno comunicacional nos referimos ao redesenho de uma nova forma de organização da sociedade “cuja finalidade central é a intensificação do processo laborativo” em que a ênfase se dá sobre o envolvimento qualitativo “em sua dimensão cognitiva” (Antunes, 2018: 104), e que passa necessariamente pelos discursos e imaginários que vão ser alinhavados a partir de diversos matizes, mas definitivamente marcados pelo processo de midiatização como trabalhado por Sodré. O autor rechaça a separação da produção e do consumo de mensagens, “a exemplo das mediações socioculturais” para a de “um conceito que descreve o funcionamento articulado das tradicionais instituições sociais e dos indivíduos com a mídia”, isto é, na midiatização o indivíduo passa a ser descrito “ele próprio, como imagem gerida por um código tecnológico” (Sodré, 2014:108). Essas mensagens, portanto, envolvem desde campanhas publicitárias que ressaltam o papel individual como transformador até no investimento do aspecto cognitivo de mais liberdade e independência na forma de viver a rotina de trabalho, desconsiderando os efeitos políticos e sociais sobre os direitos sobre o trabalho e a cidadania.

É nesse contexto que, para Han, imigrantes deixam de ser vistos como estrangeiros “no sentido enfático, que representaria um perigo real”, para se constituírem “mais como um peso do que como ameaça” (2017: 12). Só que esse peso pode ser re-significado. Dessa forma, está dada a senha do trabalho de mais um rebranding: o migrante empreendedor.

Migrantes EMPREENDEDORES e trabalhadores gig

A relação entre migração e trabalho e plataformização do trabalho se acentua em um contexto de crescente precarização do trabalho em que autores como Graham e Woodcock (2019) chamam de gig economy. Contudo, as economias de países do Sul Global são sedimentadas historicamente na gig economy, enquanto informalidade e como norma histórica da classe trabalhadora (Grohmann & Qiu 2020). A novidade para os migrantes é uma articulação entre racionalidade empreendedora, cidadania sacrificial a partir da plataformização do trabalho (Casilli & Posada 2019) isto é, a associação com as Big Tech, tanto por meio de trabalho direto, como no caso dos entregadores ou motoristas de aplicativos, como daqueles que dependem das redes sociais para realizarem as suas vendas, no caso dos empreendedores que não têm lojas virtuais como no dos influenciadores. O que está em questão é a radicalização das relações entre organizações não governamentais e migrantes rumo à intensificação de sua precarização do trabalho.

A plataformização do trabalho não é um processo homogêneo – tanto pela diversidade de plataformas quanto pelos perfis de trabalhadores. No caso das ONGs, centrais no capitaneamento do treinamento empreendedor em São Paulo, primeiramente, e em outros estados, como Roraima, trata-se de um grupo de migrantes que é obrigado a deslocar-se para trabalhar por meio de plataformas para gestão da sobrevivência – e, mesmo assim, há diferenças quando a relação com as plataformas é com AirBnb ou Uber, pois há mecanismos distintos de gestão de trabalho e relação com as plataformas (ver Zanforlin & Grohmann, 2022).

A literatura sobre trabalho em plataformas focada na Europa (Van Doorn, Ferrari & Graham 2020, Woodcock & Graham 2019, Però 2019, Könönen 2019, Van Doorn 2020) destaca o papel central da migração na moldagem dessas atividades. As investigações evidenciam relações dialéticas entre degradação e oportunidade de trabalho, entre autonomia e dependência. Dentre algumas características do trabalho migrante em plataformas, os autores destacam discriminação e racismo, formalização seletiva do trabalho e barreiras de linguagem. Reconhecemos a produtividade da perspectiva do trabalho para compreender a migração e os migrantes, pois são sujeitos em busca da gestão de suas próprias sobrevivências a partir do trabalho como uma questão-chave em busca de acessar uma possível cidadania. No entanto, é necessário salientar que o trabalho migrante e suas relações com plataformas em um país como o Brasil ocorre de modo muito diverso em relação à Europa tanto pelas características da força de trabalho e sua mobilidade quanto pelo papel central de organizações não governamentais.

Segundo Zanforlin e Grohman (2022), durante a década de 2000, o foco da relação entre comunicação e racionalidade empreendedora era a transformação dos processos organizacionais em lógicas de reality show. Isso também ocorreu em projetos de treinamento da ONG Migraflix (Zanforlin & Amaral, 2019), cujo formato apresenta muitas similaridades com realities de gastronomia, em que cruzam elementos de empreendedorismo e jogo a partir da crescente responsabilização individual traduzida como se fossem oportunidades.

Neste momento, a integração de migrantes já envolvia relações entre ONGs, a agência da ONU para refugiados (ACNUR) e corporações capitalistas transnacionais. Na última década, estas articulações se acentuaram com o uso de plataformas digitais para terceirizar obrigações das organizações ligadas a migrantes. Então, os diferentes vínculos de trabalho dos migrantes passam por uma crescente dependência de plataformas digitais, seja para comunicação com outros migrantes e organização, seja para efetivamente conseguir sobreviver por meio de seu trabalho. Isso não significa, porém, que a lógica de reality show tenha desaparecido, mas intensifica-se por uma gamificação vinda de cima (Woodcock & Johnson 2018) própria dos mecanismos da plataformização do trabalho. Esta, por sua vez, é menos uma alteração completamente nova do que uma radicalização de processos anteriores já existentes, ou seja, as transformações de processos de financeirização e cidadania sacrificial a partir das relações com as plataformas, com destaque para as redes sociais. De novo, a prédica no empreendedorismo se soma ao convite das plataformas digitais e no apelo neoliberal à liberdade e autonomia que camuflam a perda de direitos e moralizam o sacrifício:

Quando a democracia passa pela economicização do Estado, da sociedade e dos sujeitos, típica da racionalidade neoliberal contemporânea, esses termos e práticas são metamorfoseados. Eles perdem sua validade política e ganham outra, econômica: a liberdade é reduzida ao direito ao empreendedorismo e sua crueldade, e a igualdade dá lugar a mundos ubiquamente competitivos de perdedores e vencedores (Brown, 2018: 9).

Contextos e Metodologias relacionadas na pesquisa

A compreensão do fenômeno migratório exige estudos transdisciplinares e o desenvolvimento de pesquisas sobre migrações e a relação com empreendedorismo no campo de estudos da Comunicação se justifica partir do conceito de bios midiático (Sodré, 2014). O caráter do bios midiático, para seu autor, tem como um dos efeitos o sequestro da fala ou das representações do real, conforme hoje fazem os sistemas neocolonais baseados na apropriação de dados (Sodré, 2021; Mbembe, 2019). A proposta se vincula, portanto à Comunicação entendida como investigação da articulação entre desigualdade social, mobilidade humana e cidadania, no sentido de não se restringir aos discursos produzidos pelas instâncias corporativas mas dialogar com as experiências dos migrantes e refugiados no acolhimento no país.

O alinhamento epistemológico com o campo também se dá através do entendimento da inspiração enquanto uma forma comunicacional característica da cultura empreendedora (Casaqui, 2017; 2019), e que reverbera tanto nas divulgações dos negócios étnicos administrados pelos migrantes, quanto nas narrativas dos influenciadores que iremos discutir a seguir. A aproximação com a ideia de inspiração se deu a partir da percepção da recorrência do compartilhamento de frases de incentivo nos perfis destes migrantes, das mensagens motivacionais diluídas em suas próprias histórias de vida e do desejo confesso de inspirar o público como uma das justificativas para atuar nas redes sociais. O que essa miríade de indícios nos revela é que a formatação subjetiva neoliberal se encontra em curso por meio de uma cadeia que envolve não apenas a produção de mensagens, mas também a sua circulação e consumo: os migrantes pensam e narram a si mesmos a partir de uma chave inspiradora, mas aquilo que inspira só faz sentido se puder ser replicado.

Aqui, cabe refletir que o conceito de empreendedorismo não se restringe à definição corriqueira de um sujeito que identifica oportunidades e as converte em lucro, devendo abarcar também a atitude, o traço comportamental de ver a si mesmo como um empreendimento que deve ser melhorado a cada dia. Assim, para além das ONGs portadoras de discursos humanitários, são os próprios influenciadores aqueles que assumem a tarefa de estimular outros migrantes a se converterem em empreendedores de si. A análise trazida é parte da pesquisa de mestrado de uma das autoras, que se propôs a compreender de que forma o tornar-se influencer se constitui como um meio de negociação de pertencimento para migrantes venezuelanos no Brasil e o que isso nos diz sobre o momento contemporâneo. A investigação partiu da combinação de técnicas etnográficas, tais como observação participante e entrevistas em profundidade, para se aprofundar em cinco perfis mantidos por venezuelanos nas plataformas Youtube e Instagram. Para este artigo, destacamos a escolha pela página do Instagram @maribellasoy, da venezuelana Maribella, que recorre às redes sociais como forma de divulgação e instrumento de trabalho.

Migrante influencer, migrante empreendedor: desempenho, performance e inspiração

Natural da cidade de La Victoria, Maribella tem 30 anos e é formada em engenharia civil, mas nunca exerceu a profissão. Segundo ela, era mais vantajoso trabalhar ajudando a mãe nos preparativos para festas e eventos do que em uma empresa onde o salário mal alcançaria as passagens. Após conseguir o diploma, em 2017, o cenário da crise se agravou e sua família passou a enfrentar insegurança alimentar. Foi nessa época que Maribella percebeu que “as pessoas estavam mais interessadas em saber o que estava acontecendo na Venezuela” do que assistir aos conteúdos humorísticos que costumava veicular e que o alcance dos novos vídeos poderia lhe servir como uma fonte de ingresso. “Eu vi uma oportunidade (grifo nosso): bom, mostro a eles o que querem e tenho o que eu quero também, que é o dinheiro para poder sair”.

Note de bas de page 4 :

O botão permite que o assinante tenha acesso a conteúdos exclusivos pagos. No caso de Maribella, a ferramenta foi habilitada pela plataforma desde dezembro de 2020.

Ao chegar ao Brasil, em fevereiro de 2020, a venezuelana foi recebida por amizades familiares que já estavam estabelecidas em Foz do Iguaçu – RS. Pouco depois veio a eclosão da pandemia da Covid-19, o que praticamente impossibilitou que conseguisse algum emprego. Aliado a isso, a necessidade se independizar e ajudar os parentes que ficaram fez com que assumisse a atividade como produtora de conteúdo como seu ofício, sendo remunerada a partir dos anúncios publicitários exibidos antes dos vídeos, da ferramenta “Seja membro”4 do Youtube e da divulgação de negócios de envio de remessas pelo Instagram, entre outros artifícios.

No Instagram da interlocutora, embora o serviço informativo relacionado a questões de interesse dos migrantes esteja presente, com indicações de páginas para procurar emprego, aluguel e preços de produtos essenciais, a experiência tornada pública não deixa de ser fonte de entretenimento, recomendação e inspiração para as comunidades de origem e de destino. Dessa forma, ao mesmo tempo em que assume o papel de uma voz especializada, Maribella se dirige também a um público brasileiro, lançando mão de um convite para que estes conheçam a sua cultura de origem e a sua visão estrangeira sobre o país onde reside. Assim, o self da migrante vira o objeto a ser mostrado, compartilhado, curtido, comentado e até mesmo admirado.

Se por um lado a internet possibilita a criação de espaços autônomos onde os migrantes elaboram representações sobre si e seus coletivos, há que se recordar que o mundo do bios midiático é o mesmo onde as próprias plataformas são regidas pela lógica da competição. Pois, como nos lembra Van Djick (2013), a conectividade enquanto cultura cujo imperativo seria expandir as conexões - cada vez mais valiosas do ponto de vista financeiro - é uma cultura onde “a organização da mudança social aposta nos princípios econômicos neoliberais” (p.21), sendo inevitavelmente moldada pelas circunstâncias históricas. Semelhante ao empreendedor, o influenciador é levado a trabalhar a si mesmo com o intuito de se aperfeiçoar em seu ofício, devendo realizar um manejo eficiente e produtivo das mídias para manter-se em evidência.

É também dentro desse cenário que os relatos dos influencers venezuelanos vêm se articulando com semânticas que incluem a resiliência, o mérito e a superação, onde as vicissitudes relacionadas à migração aparecem como componentes de uma retórica inspiracional que estimula os conterrâneos a serem valentes, fortes e alegres para enfrentarem as batalhas cotidianas (ver Figura 1). No caso de Maribella, é patente que o empreendedorismo se manifesta não apenas como um discurso. Isso porque a própria iniciativa de criação de conteúdo pode ser lida no marco da plataformização do trabalho, considerando que a sua renda depende do engajamento obtido, além dos serviços de divulgação que consegue prestar graças à influência que adquiriu frente ao nicho.

Figura 1 - Propósito e positividade são apontados como “segredos” para trilhar uma trajetória migratória ascendente

Figura 1 - Propósito e positividade são apontados como “segredos” para trilhar uma trajetória migratória ascendente

Fonte: Reprodução Instagram/@maribellasoy (01/07/2021).

A partir das ideias de Casaqui (2017, 2019), entendemos que as narrativas inspiracionais remetem a um tipo de construção discursiva que segue os preceitos de uma sociedade empreendedora. Enquanto narração, tais discursos trazem como um de seus elementos constitutivos a temporalidade, que é representada e articulada consoante lógicas específicas. Na trama elaborada por Maribella, é notável que os acontecimentos são estruturados de maneira projetiva, onde o passado se desenrola como um tempo já superado e o que importa é o olhar adiante. Assim, ora os desafios são minimizados pelo imperativo de dar a volta por cima, ora são o que amplificam o valor do migrante enquanto sujeito resiliente.

Quando questionada sobre o papel que atribuía a atividade como influenciadora, a migrante respondeu à pesquisa “inspirar”. Isto é, o falar sobre si e suas vivências enquanto estrangeira se reveste de um tom propositivo, a partir do qual fornece dicas e aconselha os interlocutores. Por servir de referência, aquilo que motiva transborda a biografia singularizada e ganha conotações coletivas, como ela explicita ao justificar que as dificuldades que enfrentou podem inspirar os seus seguidores “a seguir adiante, a cumprir seus sonhos, que não se rendam, que não se queixem tanto”. Em outras palavras, a experiência vivida e adquirida no Brasil, utilizada como base para o seu testemunho, não apenas cativa o interesse e admiração geral, como também lhe confere o posto de mentora em matéria de migração.

Figura 2 - Conteúdos autopromocionais

Figura 2 - Conteúdos autopromocionais

Fonte: Reprodução Instagram/@maribellasoy (11/07/2022).

Fonte: Reprodução Instagram/@maribellasoy (07/06/2022).

O que se percebe nesse par de postagens é que elas reforçam o empreendedorismo de si como requisito para o sucesso. Conjugados ao ideal de sucesso estão ingredientes como a felicidade, o bem estar e a realização pessoal, vistos como dependentes da iniciativa do migrante em se munir de informações com vistas a maximizar os seus resultados na empreitada migratória. Acima de tudo, delineia-se um sujeito comprometido com os seus objetivos: o guia digital, por exemplo, é indicado na legenda para quem “está realmente decidido a fazer o que deve ser feito para que tudo ocorra bem em sua nova vida” (grifos nossos). Nesse sentido, ainda que Maribella se disponibilize a aconselhar os clientes através do Whatsapp, a ajuda fornecida não exime a responsabilidade do migrante em abrir os seus próprios caminhos.

Como sucesso e fracasso passam a ser vistos como uma questão de escolha, o que irá levar o indivíduo a um resultado ou outro depende unicamente do seu desempenho. Se desistir não é uma opção em uma sociedade da alta performance, a mensagem passada pela influenciadora é que é sempre possível ir além do que se acredita, daí a ênfase na motivação e na autoconfiança. A exaltação do ato de empreender, de tomar a iniciativa e assim tornar-se responsável por sua trajetória, discursivamente estende o campo de possibilidades do migrante ao infinito, trazendo como pressuposto a superação contínua dos próprios limites. Contudo, se na superfície nenhum obstáculo se apresenta como instransponível, na prática, não são todos os que podem prosperar.

A ideia fica clara na cartilha prescrita por Maribella contendo os “3 erros que eliminam seu êxito no jogo da migração” (Figura 3), no qual alerta os perigos da improvisação, de contar com as promessas alheias e ser “rebelde”, definido como “não respeitar o país que te dá acolhimento, fazer comentários e críticas destrutivas”. Aqui, é sintomática a comparação da migração com um jogo, no qual os competidores deverão aprimorar a si mesmos para se tornarem vencedores e onde os erros são eliminatórios e, portanto, só os mais aptos poderão sobreviver. Além disso, percebemos que as concepções de autonomia e responsabilidade individual também carregam um sentido moralizante, pois o migrante deverá estar ciente das suas obrigações enquanto hóspede se quiser ser bem recebido.

Figura 3 - Carrossel compara a migração a um jogo onde o descumprimento de certas regras pode ser “cruel”

Figura 3 - Carrossel compara a migração a um jogo onde o descumprimento de certas regras pode ser “cruel”

Fonte: Reprodução Instagram/@maribellasoy (01/10/2021).

Considerações Finais

No texto “Cidadania Sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade”, Wendy Brown lança a pergunta: “que razão se atribui a um comportamento empreendedor diligente e responsável, porém não recompensado?” (2018: 9). Na sequencia a autora assinala a presença de um “discurso nacional-teológico de sacrifício moralizado que resolve artificiosamente o paradoxo da conduta não recompensada prescrita de maneira normativa pelo neoliberalismo” (idem), alerta para as múltiplas maneiras de exercício do neoliberalismo e suas adaptações a realidades nacionais, concorda com Foulcault acerca da “ascensão de uma forma de razão normativa que estende métricas e práticas de mercado a todas as dimensões da vida humana – política, cultural, pessoal, vocacional, educacional” (idem) para demonstrar que não importa a faceta que irá tomar, no neoliberalismo, “a cidadania ativa é diminuída para coincidir com o capital humano responsabilizado, enquanto a cidadania sacrificial se expande, incluindo qualquer coisa relacionada à saúde de uma empresa ou nação, ou, mais uma vez, a saúde da nação como empresa” (Brown, 2018:34). O efeito direto é o relatado a seguir:

A responsabilização é a sobrecarga moral, posta sobre o elemento mais fraco no fim da linha, de ter que discernir e seguir corretamente as estratégias de valorização do capital humano. A responsabilização converte, discursiva e eticamente, o trabalhador, o estudante, o pobre, os pais e o consumidor, naquele cujo dever moral é buscar o auto- investimento perspicaz e estratégicas empreendedoras de autocuidado (Brown, 2018: 38).

No nosso caso específico de análise, o elemento mais fraco é a figura do migrante, deslocado de suas redes de afeto e apoio, suscetível à adaptação às normas de cada país para exercício de uma cidadania precária, num momento em que o empreendedorismo vem sendo elegido como o lugar preferencial para inserção sociolaboral, isto é, na prática, continua apartado da nova sociedade por meio da reivindicação de direitos e sobrepõe-se a esse indivíduo a responsabilização pela sua condição de estrangeiro, a partir da moralização do sacrifício por meio da propalada autonomia. O migrante aceito é o que não reivindica, mas toma para si a responsabilidade de elaborar seu pertencimento que será sempre marginal. Dentro deste contexto, além de acatar o papel de empreendedor, a figura que completa a dinâmica desta nova formatação subjetiva, é a do migrante empreendedor influenciador, aquele que vai ser tomado de forma ambígua: tanto informa, a partir das dicas e conhecimentos compartilhados acerca da própria experiência de mobilidade, como se torna a forma mais acabada do que Han (2017) chama de sociedade do desempenho, da positividade. O influenciador também é o ente responsável por legitimar o caráter de positividade a partir de um discurso inspiracional que complementa a subjetividade empreendedora.

Nesse sentido, Paula Siblia chama atenção para ascenção da figura do influenciador digital como este componente fundamental do neoliberalismo e fruto do contexto descrito por Brown. Para Sibilia, a conjugação entre os códigos do espetáculo midiático, cada vez mais assimilados pela população, com os “impulsos neoliberais que renovaram o capitalismo, um certo espírito empresarial parece tudo permear com seus valores e seu modo de funcionamento” (2016, p. 33), e expande as regras do mercado para todos os âmbitos. Já Han, aponta que “o novo tipo humano” está exposto e entregue indefeso ao excesso de positividade, “é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá, deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo” (2017:.28). O ponto central do argumento do autor é que esta sociedade que ele denomina como a do desempenho acaba por ser também a do cansaço, uma vez que só a recorrência a antidepressivos e estimulantes garantem o funcionamento individual: “o homem como um todo se transforma numa máquina de desempenho” e, como consequencia, “a sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos; (...) um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando” (Han, 2017: 70-71).

Foi o que observamos por meio das análises apresentadas: as soluções criadas para dar conta das dificuldades relacionadas à adaptação e inserção no país estão sendo individualizadas, vistas como dependentes da disposição para o trabalho, do esforço e mérito de cada um e, portanto, contribuindo para esvaziar o caráter intrinsecamente político do migrante e das migrações. Pois, à medida que problemas coletivos na origem passam a ser vistos como solucionáveis exclusivamente por meio da vontade e perseverança do sujeito, não apenas o papel governamental em garantir os seus direitos mínimos é posto de lado, como se deixa de questionar sobre as injustiças e discriminações sistêmicas comuns. Revestida por componentes emocionais e afetivos, a vulnerabilidade do sujeito é minimizada face o seu testemunho edificante, que adere ao discurso do trabalhador resiliente e, com isso, consegue atrair os holofotes para si.

Note de bas de page 5 :

A frase foi proferida em crítica ao Pacto Global para Migração, acordo assinado por 164 países em dezembro de 2018, quando no término do mandato presidencial de Michel Temer. Vale destacar que a primeira medida adotada pelo governo Bolsonaro em temática migratória foi a retirada do Brasil do pacto. Ver https://www.conectas.org/noticias/governo-bolsonaro-deixa-pacto-global-para-migracao/, acessado em 26/08/2022.

É nesse caminho que percebemos a intensa profusão de narrativas inspiracionais, nas quais o migrante midiatiza o próprio cotidiano e se converte em exemplo passível de ser admirado e replicado por seus seguidores. Logo, entendemos que a apropriação de tal retórica tem viabilizado o alcance de vozes minoritárias para públicos mais amplos, se constituindo enquanto uma estratégia de comunicação e negociação intercultural e, assim, abrindo margem para um tipo específico de aceitação na sociedade receptora. Ao mesmo tempo, embora a mudança de migrante-problema para migrante exemplar possa parecer positiva e até mesmo empoderadora, há que se destacar que estamos diante de um reconhecimento meritocrático que em muito se distancia da hospitalidade irrestrita historicamente creditada ao “Brasil cordial”. Pelo contrário, o que se tem visto nos últimos anos é que as portas não estão abertas para todos, ou, como dito pela autoridade máxima do país, “não é qualquer um que entra em nossa casa”5. Mais do que um fechamento seletivo, parece haver pouco espaço para o ser migrante em sua integralidade, restando a ele se adequar a única cidadania possível nestes tempos neoliberais: a do empreendedor.

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Para citar este documento

Zanforlin, S. y Lyra, J. (2022). Migrante empreendedor, migrante influencer: cidadanias precárias em tempos neoliberais. Trayectorias Humanas Trascontinentales, (9). https://doi.org/10.25965/trahs.5075

Autores
Sofia Zanforlin
Professora do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE. Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGCOM- UFRJ. Coordenadora do grupo de pesquisa Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações, Migra (DCG-DCOM/UFPE). Coordenadora da pesquisa Fronteiras da mobilidade no Brasil contemporâneo: comunicação e experiência migrante na securitização do acolhimento e da integração social no âmbito da Operação Acolhida, financiada pelo edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenadora do GT Diaspora and Media do International Association for Media and Communication Research – IAMCR
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Recife, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-4030-1329
sofia.zanforlin@ufpe.br
Júlia Lyra
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM). Jornalista pelo Departamento de Comunicação (DCOM). Integrante do grupo de pesquisa Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações, Migra (DCG-DCOM/UFPE). Participante da pesquisa Fronteiras da mobilidade no Brasil contemporâneo: comunicação e experiência migrante na securitização do acolhimento e da integração social no âmbito da Operação Acolhida, financiada pelo edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Realiza pesquisas focadas na questão migratória transnacional em suas interfaces com as práticas comunicativas e as relações interculturais. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Recife, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-8493-3921
julia.lyra@ufpe.br
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