O direito à educação não formal: a circularidade das crianças Kaiowá na aldeia Laranjeira Ñanderu, Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul1
O presente trabalho analisará o direito à educação não formal das crianças Kaiowá que circulam dentro de seu território (povoado), em que elas vivem juntamente com sua família e recebem os ensinamentos da educação tradicional. Na aldeia, as crianças encontram-se por todos os lugares, participam da vida dos adultos que transitam na aldeia, brincam nas trilhas que ligam as casas à mata e têm autonomia e liberdade para circular dentro do território. O enfoque é entender que a infância das crianças Kaiowá perpassa as brincadeiras, a educação não formal, os modos de ensinar e aprender, a cosmovisão e a representação que lhes permitem uma melhor compreensão e partilha do viver social na aldeia. Nesta comunidade, as crianças e suas famílias ocupam um pequeno fragmento de seu território ancestral, o qual se encontra em um processo judicial de reintegração de posse, porém as crianças circulam livremente pelas trilhas na aldeia para visitar os parentes, caçar passarinhos, coletar frutas e tomar banho no córrego Karajá Arrojo. A vivência delas se diferencia das atividades dos adultos, embora suas responsabilidades e liberdades sejam diferentes de acordo com a idade de cada uma. Perceber como aprendem os ensinamentos por meio da educação não formal por meio da circularidade vivida dentro do território é um direito que lhes assegura manter viva sua história, sua cultura e a tradição.
This paper will analyze the right to non-formal education of the Kaiowá children that circulate within their territory (village), where they live together with their family and receive the teachings of traditional education. In the village, children find themselves everywhere, participate in the lives of adults who travel in the village, play on the trails that connect the houses to the woods and have autonomy and freedom to move within the territory. The focus is to understand that the Kaiowá children 's childhood is a joke, non - formal education, ways of teaching and learning, worldview and representation that allow them to better understand and share social living in the village. In this community, the children and their families occupy a small fragment of their ancestral territory, which is in a legal process of reintegration of possession, but the children circulate freely in the village trails to visit relatives, hunt birds, collect fruits and take a shower in the Karajá Arrojo stream. Their experience differs from the activities of adults, although their responsibilities and freedoms differ according to their age. Perceiving how they learn the teachings through non-formal education through the circularity lived within the territory is a right that assures them to keep alive their history, their culture and the tradition.
El presente trabajo analizará el derecho a la educación no formal de los niños Kaiowá que circulan dentro de su territorio (poblado), en que viven junto con su familia y reciben las enseñanzas de la educación tradicional. En la aldea, los niños se encuentran por todas partes, participan en la vida de los adultos que transitan en la aldea, juegan en los senderos que unen las casas a la selva y tienen autonomía y libertad para circular dentro del territorio. El enfoque es entender que la infancia de los niños Kaiowá sobrepasa los juegos, la educación no formal, los modos de enseñar y aprender, la cosmovisión y la representación que les permiten una mejor comprensión y compartir el vivir social en la aldea. En esta comunidad, los niños y sus familias ocupan un pequeño fragmento de su territorio ancestral, el cual se encuentra en un proceso judicial de reintegración de posesión, pero los niños circulan libremente por los senderos en la aldea para visitar a los parientes, cazar pajaritos, recoger frutas y bañarse en el arroyo Karajá Arrojo. La vivencia de ellas se diferencia de las actividades de los adultos, aunque sus responsabilidades y libertades sean diferentes de acuerdo con la edad de cada una. Percibir cómo aprenden las enseñanzas por medio de la educación no formal a través de la circularidad vivida dentro del territorio es un derecho que les asegura mantener viva su historia, su cultura y la tradición
I- Introdução
Os Guarani Kaiowá e Ñandeva constituem dois povos indígenas geralmente chamados de Guarani na literatura antropológica, mas que se identificam e se percebem como etnias distintas em Mato Grosso do Sul e em outras partes da região platina. No Paraguai os Kaiowá são conhecidos como Paĩ-Tavyterã e os Guarani Ñandeva conhecidos como Xiripá ou Avá.
Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que a ocupação geopolítica da região de fronteira seguida pela exploração econômica, levada a cabo como política oficial do Estado Brasileiro após a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), culminou no cerceamento territorial dos povos indígenas (Kaiowá e Guarani) no antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul. Disso resultou no abalo da autonomia política, fragmentação das formas tradicionais de organização social e na fragilidade econômica presente nas comunidades atuais.
Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, a produção científica sobre os Kaiowá tem crescido significativamente, em especial se levada em consideração a atual realidade das dezenas de comunidades indígenas e a disputa territorial em Mato Grosso do Sul, sobretudo na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Apesar da existência dessa produção intelectual, constata-se uma ausência de estudos sobre crianças indígenas Kaiowá, especialmente aquelas que moram em acampamento.
II- A Aldeia Laranjeira Ñanderu e a situação de acampamento
A aldeia/acampamento Laranjeira Nãnderu é uma área que consta no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público Federal (MPF) desde 2007, e que a comunidade indígena já ocupou 25 hectares de parte de seu território tradicional, beneficiados por decisão judicial que suspendeu uma reintegração de posse.
Chamamos de situação de acampamento, a forma de adaptação do conceito de situação histórica formulado por Pacheco de Oliveira (1988), bem como a situação e o papel das crianças neste contexto. Apresentamos algumas questões sobre o assunto para tornar nossa reflexão mais fecunda: a) Em que consistem estes acampamentos? b) Quando começam a aparecer na região e quais são as razões para a sua existência? c) Como vivem as crianças indígenas e como elas percebem esta situação de acampamento? d) Como elas se organizam e desenvolvem o processo próprio de aprendizagem no seu cotidiano neste contexto? e) Que tipo de relação as crianças indígenas desenvolvem com os adultos e como se desenvolve o processo próprio de aprendizagem no acampamento? f) Qual é a percepção do processo próprio de aprendizagem dos conhecimentos aprendidos com a pedagogia indígena no acampamento?
Para entender a questão da cultura da comunidade indígena Kaiowá em situação de acampamento faz-se necessário entender como ocorreu a explosão demográfica nas reservas indígenas demarcadas entre 1915 e 1928 e o consequente desajuste na organização social e política tradicional dessas comunidades.
O estudo acerca da criança indígena no sul de Mato Grosso do Sul era pouco desenvolvido até há pouco tempo atrás quando os estudos antropológicos eram voltados para a interlocução com os adultos. Hoje, a criança indígena é fonte de pesquisa em programas de mestrado e doutorado a nível nacional que debatem as questões da infância e da escolarização indígena.
A criança indígena tem um lugar importante nas relações estabelecidas dentro de sua sociedade particular e, também, na construção de suas identidades. Reconhecer isto é assumir que a criança indígena é um ser ativo na construção das relações em que se engaja, sendo parte integrante da sociedade, participante e construtora de cultura. Por isso, buscamos inserir efetivamente as crianças como sujeitos ativos na “construção e determinação de sua própria vida social, na dos que as rodeiam, e na da sociedade na qual vivem”, conforme pontuam Lopes da Silva; Nunes (2002, p.11).
Até fins do século XX, grande parte dos estudos sobre os Kaiowá tendia a considerar as reservas indígenas como a única consequência – e único destino – do esparramo promovido pelas frentes de expansão, termo este usado amiúde pelos próprios indígenas. No entanto, conforme explica Lutti (2009, p. 35-36), nos últimos anos têm sido encontradas novas realidades históricas e sociais entre os indígenas.
Isso demonstra a capacidade criativa de se posicionarem diante de situações históricas das mais adversas. Entre estas novas realidades estão os grupos que passaram a viver nas periferias das cidades, em acampamentos em margens de estradas e rodovias, além daqueles que ocupam pequenas áreas de antigos tekoha, geralmente ainda não regularizadas como terra indígena.
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Fundação Nacional do Índio. É o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal.
Do ponto de vista historiográfico e da literatura etnológica, os acampamentos indígenas surgem na região a partir do final da década de 1970. Aumentaram entre as décadas de 1980 e 1990, período em que ocorreram as primeiras demarcações de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, realizadas pela FUNAI2. Esse período coincide também com a eliminação dos últimos espaços de refúgio de fundos de fazendas, onde ainda era permitida a presença de famílias indígenas.
A intolerância dos proprietários de terras, preocupados com a possibilidade de demarcação de mais áreas indígenas, resulta na proibição da permanência dessas famílias nas fazendas da região. A partir de então, muitas famílias que recusaram a deslocar-se para as reservas permaneceram em áreas próximas a seus antigos territórios, ocupando margens de rodovias ou propriedades privadas.
Outras famílias chegaram a ir para as reservas, mas não se adaptaram ao novo modo de vida, ou seja, ao processo de territorialização ali imposto, retornando para as proximidades de seus tekoha, fortalecendo o vínculo que possuem com a terra tradicional (Lutti, 2009: 39-40).
Pode-se afirmar, ainda com base nos estudos de Lutti (2009: 40), que a intolerância em relação à presença dos indígenas nas propriedades rurais e a subsequente mudança para as margens de estradas e rodovias ocorrem, pois, no mesmo momento em que outros grupos Kaiowá começaram a se mobilizar para a retomada de seus territórios.
O etno-historiador Antônio Brand apresenta dados importantes para a compreensão da luta e retomada de territórios a partir de 1978. Em suas palavras:
“[...] As primeiras ações de recuperação de espaço dos quais haviam sido expulsos, que obtiveram êxito, iniciam-se a partir de 1978, na aldeia Takuaraty-Yvyvkuarusu, localizada no município de Paranhos. Os índios dessa área foram, por diversas vezes, expulsos e transferidos para áreas próximas, porém, mantendo-se articulados, sempre retornavam. Quase simultaneamente a população das aldeias de Rancho Jacaré e Guaimbé, localizadas no município de laguna Carapã, é transferida, arbitrariamente, para área indígena dos Kadiwéu, município de Porto Murtinho. Lograram retornar as suas terras, dois anos após. Essas duas áreas foram em 1984, as primeiras a serem reconhecidas, como de posse indígena pelo governo, após 1928”(Brand, 2004: 141).
Dessa forma, pode-se reafirmar a importância da década 1980 como o período de fortalecimento das mobilizações indígenas para reaver áreas de ocupação tradicional. Uma das estratégias deste período é a retomada do que os próprios indígenas denominam de Aty Guasu, a “grande assembleia”. Trata-se da articulação política de várias lideranças Kaiowá nesses grandes encontros periódicos e, também, o fortalecimento de alianças com pessoas e organismos da sociedade civil (ONGs, Universidades, pesquisadores etc.).
Estas ações indígenas são fortalecidas por meio, sobretudo, do artigo 231 da Constituição Federal de 1988, o qual reconhece aos indígenas os direitos de terem costumes, línguas, religiões e organizações sociais distintas daquelas válidas à sociedade nacional. No mesmo dispositivo constitucional consta ainda aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988).
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Por confinamento entende-se aqui o processo histórico de ocupação do território Kaiowá por frentes não indígenas, que se seguiu à demarcação das reservas indígenas pelo Serviço de Proteção aos Índios - SPI (a partir da década de 1910), forçando a transferência dessa população para dentro dos espaços definidos pelo Estado como posse indígena. Indica, portanto, o processo de progressiva passagem de um território indígena amplo, fundamental para a viabilização de sua organização social, para espaços exíguos, demarcados a partir de referenciais externos, definidos tendo como perspectiva a integração dessa população, prevendo-se sua progressiva transformação em pequenos produtores ou assalariados a serviço dos empreendimentos econômicos regionais (Brand, 1997).
Entretanto, se por um lado o movimento indígena passou a obter alguns resultados, por outro lado os fazendeiros intensificam o processo de expulsão das famílias indígenas que ainda permaneciam dentro de suas propriedades. Dessa forma, como resposta ao processo de confinamento3 nas reservas e ao grande aumento populacional nessas áreas, os indígenas intensificam a busca de possibilidades de organização alternativas a esta situação. Este é o caso dos acampamentos em margens de estradas e rodovias e as tentativas de reocupação de seus antigos tekoha.
Neste momento, para compreender melhor os tipos de ocupação destes grupos indígenas, pode-se pensá-los como sendo uma forma alternativa de “modalidade de assentamento”, conforme proposto por Pereira (2007, p. 3). Este conceito foi desenvolvido pelo autor a partir de uma categoria bastante comum na arqueologia, conforme pratica durante os estudos em parceria com Jorge Eremites de Oliveira (Eremites De Oliveira; Pereira, 2009).
Segundo explica, o termo assentamento – do inglês settlement – é mais comum na arqueologia e pode ser profícuo para se analisar as diferenças entre a ocupação tradicional e as novas formas de ocupação do território, desenvolvidas a partir da chegada das frentes de exploração econômica na região. Por isso, essas novas maneiras de ocupar o espaço geográfico podem ser tratadas como diferentes “modalidades de assentamentos” (Lutti, 2009: 43-44).
Entre as modalidades de assentamento estão, com efeito, tanto a territorialização em reservas quanto à ocupação dos espaços alternativos a essas áreas, como é o caso dos acampamentos às margens de estrada e outras ocupações. Assim, a ideia de assentamento se refere à maneira como indígenas ocupam o espaço geográfico. No texto abaixo, Pereira (2007) trata destas novas modalidades de assentamento:
“Como a população kaiowá não se conformou em sua totalidade à situação de reserva, identifico algumas modalidades de assentamento que não estão diretamente associadas a esses espaços físicos, reconhecidos como terras indígenas. Assim, além das reservas, descrevo: a) os espaços sociais dos acampamentos mobilizados para a retomada de terras consideradas pelos Kaiowá como de ocupação tradicional; b) as populações que vivem em periferias de cidades; e c) as populações de “corredor”, caracterizadas por famílias isoladas e mesmo comunidades que nos últimos anos passaram a residir em caráter relativamente permanente nas margens de rodovias e estradas vicinais” (Pereira, 2007: 3).
Estes modelos de compreensão das formas de assentamento, ou de ocupação territorial atual dos povos Kaiowá não esgotam todas as formas encontradas por estes grupos, haja vista a criatividade ante tantos desafios pela sobrevivência e reconquista de seus territórios tradicionais. Mesmo assim, estes estudos auxiliam na tentativa de entendimento destes fenômenos.
Assim, percebe-se, a partir desta breve situação histórica aqui apresentada, como ocorre a decisão de acampar em margens de estradas e rodovias, ou reocupar áreas que consideram seus tekoha. Na realidade, existem muitas formas de assentamentos Kaiowá, dentre os quais estão os chamados aqui de situação de acampamento, localizados em margens de estradas e rodovias e com pouca visibilidade política. Talvez por isso ainda sejam menos considerados por certos órgãos oficiais, em especial a FUNAI.
III- Acriança indígena Kaiowá e os processos próprios de aprendizagem
Quando falamos em pedagogia indígena não se confunde este tipo de conhecimento com as orientações previstas na Constituição Federal de 1988 que fala da competência da União para proteger e fazer respeitar todos os costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que prevê que a educação escolar dos povos indígenas em relação ao currículo deve ter uma base nacional comum e ser complementada com as características regionais e locais.
A pedagogia indígena, que se traduz nos processos próprios de aprendizagem que ocorre na aldeia/acampamento se pauta no processo de socialização e educação que recebe de seus pais no contato cotidiano. Esse contato se amplia na relação com as outras crianças e no contato com a natureza.
É importante reconhecer que os povos indígenas por meio dos processos próprios de aprendizagem mantêm vivas as suas formas próprias de educação e por meio delas podem contribuir na formulação de uma política de educação que seja capaz de atender aos anseios da realidade atual.
Segundo Corry (1994) os povos indígenas são sociedades viáveis e contemporâneas com complexos modos de vida assim como com formas próprias de pensamento que são muito pertinentes para o mundo atual.
Meliá (1995) ao falar sobre a temática da educação destaca que:
“As propostas indígenas de escola provocam medo, por parte da nossa sociedade, pelas ideias revolucionárias que colocam. As propostas de escolas pensadas pelos próprios povos indígenas mostram-nos a inutilidade de muitas coisas; nossa sociedade já aceitou toda comédia que é a escola” (Meliá, 1995).
Portanto, a educação é um processo que ocorre de modos distintos e por meio de pedagogias e mecanismos próprios em cada cultura. Os povos indígenas possuem espaço e tempos educativos em que participam a pessoa, a família, a comunidade e todo o povo. Assim, a educação é assumida como responsabilidade coletiva.
Benites (2014) defendeu a sua dissertação que tratou de “Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da aldeia Te’yikue” e afirmou que a construção da escola indígena (processos próprios de aprendizagem) se faz na perspectiva do diálogo entre os conhecimentos tradicionais e a escola formal. Relatou que a identidade que se forma é o produto de uma realidade e resistência.
Também a dissertação de Tonico Benites (2009) tratou do tema “A escola na ótica dos Ava Kaiowa: impactos e interpretações indígenas” analisou as divergências e conflitos entre a educação Kaiowa realizada pelas famílias extensas e a escola formal introduzida nas aldeias. Fez também uma análise dos efeitos de atividades desenvolvidas pelas antigas escolas integracionistas na formação de novas gerações indígenas, identificando os possíveis impactos e interferências negativas na organização educativa das famílias extensas Kaiowa.
A dissertação de Benites (2009) contribuiu também, para se entender que na educação das crianças se dividem dois grupos em que o primeiro grupo educativo é composto pelas mulheres e o segundo grupo é composto pelos homens. O primeiro grupo é determinante, pois todas as tarefas educativas são supervisionadas rigorosamente pela liderança feminina, a avó, juntamente com filhas e noras mais experientes.
Nesse momento de aprendizagem é que se faz a classificação das crianças por ciclo de crescimento. Segundo Benites (2009):
“Neste âmbito da família extensa para ensinar as crianças e jovens de modo correto. É feita uma classificação das crianças por ciclo de crescimento, considerando os diversos momentos por que passam os jovens. É levada em consideração o estado e a característica de cada alma gradativamente assentada no corpo da criança, observando a sua força e a fraqueza, visto que a condição da alma (ayvu ñe’e) é a condição vital para o bom desenvolvimento da aprendizagem e crescimento saudável do corpo” (Benites, 2009: 62).
Aqui começam os processos próprios de aprendizagem que já se iniciam na educação tradicional dentro da aldeia, pois, as fases de crescimento das crianças são acompanhadas de forma que elas ganham liberdade vigiada no espaço familiar. A sequência das fases é acompanhada pela mãe e avó que ajudam a criança com a idade de cinco a dez anos a realizar a ressignificação do comportamento e a incorporação de frases ou ideias de adultos. Segundo Benites (2009):
“Esta fase é considerada a mais delicada e preocupante, porque é o início da imitação, reprodução e incorporação de qualquer comportamento e atitudes, sejam positivas ou negativas. Ainda é possível afastar da alma as palavras imperfeitas ou negativas, que podem comprometer a força e a aprendizagem do modo de ser adequado (teko porã vy’a) almejado pela família. É possível também fortalecer o estado da alma no corpo, para suportar e superar os desafios futuros frente aos possíveis ataques dos espíritos maléficos, visando sempre a derrotá-los e a evitar a sua incorporação”. (Benites, 2009: 62).
Verifica-se que os processos próprios de aprendizagem se iniciam a partir do momento em que a criança tem uma identidade na aldeia e cada família pelas mulheres (avó, mãe, noras) supervisiona as tarefas desenvolvidas por elas. Após, acompanhando o ciclo de crescimento a criança recebe a educação pelos homens. Somente após esse processo de aprendizagem é que os alunos indígenas ficam aptos a buscar a escolarização nas escolas públicas.
Na dissertação de Seizer da Silva (2009) que tratou do tema “Educação escolar indígena na aldeia bananal: prática e utopia” o autor investigou as permanências e mudanças na prática pedagógica decorrente da passagem de escola extensão para escola indígena de ensino médio, na Aldeia Bananal, Distrito de Taunay, Município de Aquidauana/MS, com especial atenção para a questão das diferenças étnicas.
Seizer da Silva (2009) debateu que os grupos escolares se organizam de acordo com os poderes que se constituem e se reconstituem dentro da Aldeia Bananal. Segundo Seizer da Silva (2009):
“Os grupos escolares se organizam, numa tomada de pertencimento, solicitada pelos grupos dominantes. Tem-se aqui a necessidade de confirmar espaços, de marcar territórios. Mas o que se vê é o trânsito constante dos sujeitos entre os diversos grupos religiosos, que demonstram seu poder no espaço onde se encontram. Mas nesse transitar, não há exclusão” (Seizer Da Silva, 2009: 118).
Para Seizer da Silva (2009) a tensão criada, os enfrentamentos e os diálogos constantes na comunidade sobre a atuação da escola, provocam desconstruções que dinamizam o pertencer crítico estabelecido (processo próprio de aprendizagem), permitindo elaborar um conhecimento satisfatório e eficaz para a comunidade escolar do povo Terena do Posto Indígena de Taunay e Ipegue, e não mais do Terena da Aldeia Bananal (Seizer Da Silva, 2009:120). A escola esquece o conhecimento que o aluno indígena produz na aldeia e que esse conhecimento poderia ser reproduzido em sua vivência na sala de aula. Na prática da escola tradicional urbana, raramente percebemos práticas de diálogo intercultural, ou seja, levar em consideração o diálogo entre os saberes indígenas e os saberes da escola.
Percebe-se a importância da relação comunidade-escola na formação da criança indígena, pois este relacionamento possibilita para o povo Terena PIN Taunay e Ipegue as desconstruções de conhecimentos e a elaboração de novos conhecimentos que possibilitem o sentido de pertença a comunidade.
Segundo Backes e Nascimento (2011) a escola indígena, por estar nesse espaço ambivalente, localizada na fronteira entre a negação e a afirmação dos saberes indígenas, ora legitimando o saber ocidental, ora subvertendo-o, torna-se um espaço de negociação privilegiado entre a cultura indígena e a cultura ocidental, reconhecendo sua incomensurabilidade ao mesmo tempo em que também reconhece a impossibilidade de que elas não se cruzem, imbriquem, mesclem, produzindo novos modos de ser/viver indígena.
Para Seizer da Silva (2009) o conhecimento circunscrito na realidade não indígena não satisfaz o seu ideal de escola indígena. Segundo ele:
“O que seria viável são os poderes polissêmicos que a atuação da escola produziria no campo social e político. Ninguém aqui pretende uma escola ligada à concepção mítica Terena, que evidencia os valores do passado. E também não querem a escola do não-índio, pura e simplesmente, com suas tecnologias e aparatos pedagógicos. Mas, dizem aqui, de uma retomada da vivência, onde todos esses valores, com seus significados, seriam colocados a apreciação da população num todo. E só ai construir efetivamente e porque não, gradativamente a educação que garante acesso, mas que não deixa de ser a do momento que o povo Terena esteja vivendo na perspectiva da interculturalidade” (Seizer Da Silva 2009: 147).
Quando se fala em interculturalidade se quer retomar com Fleuri (2003) que a educação intercultural propõe uma escola dialógica onde o diverso faz parte do seu espaço, sem ser mancha que provoque a exclusão, buscando por meio da escola superar as discriminações da sociedade (Seizer Da Silva 2009: 98).
A dissertação de Elda Vasques Aquino (2012) que tratou da Educação Escolar Indígena e os processos próprios de aprendizagens: espaços de inter-relação de conhecimentos na infância Guarani/Kaiowa, antes da escola, na Comunidade Indígena de Amambai, Amambai – MS teve como objetivo principal conhecer melhor a criança Guarani/Kaiowa antes de ir à escola, e observar/descrever como se davam as suas aprendizagens, tendo em vista a compreensão dos seus processos próprios de aprendizagens e as suas interações estabelecidas com o cotidiano e seu entorno.
Verifica-se que Elda Vasques Aquino (2012) concluiu que as crianças que ainda não haviam ido para a escola têm seus próprios processos de aprendizagem uma vez que essa aprendizagem vai ocorrendo no cotidiano não importando os momentos e nem os lugares em que se encontram. Segundo a autora:
“Tudo se torna uma escola de aprender, sempre vai ultrapassando as fronteiras e os entre-lugares e afirmando sua identidade, buscando o seu pertencimento nos lugares adequados, aprendendo a conviver com os dois mundos diferentes, respeitando as diferenças culturais existentes” (Aquino, 2012: 6).
Segundo Aquino (2012) o aprendizado ocorre nos diferentes momentos da vida. Verificamos, portanto:
“[...] ao longo de toda a vida as pessoas vão adquirindo muitos aprendizados, e esses aprendizados acontecem em diferentes momentos. As crianças indígenas Guarani/Kaiowa, como todo e qualquer ser humano, estão em constante processo de desenvolvimento, aprendendo dos mais diferentes jeitos e em vários momentos da vida” (Aquino, 2012: 86).
E, nesse passo, apresenta diversos depoimentos de entrevistados que relatam serem as crianças sujeitos de dominação culturais e que apesar disso transitam sobre as culturas sem dificuldades embora sejam educadas para respeitar os valores tradicionais e os valores não indígenas (2012). Reforça esse olhar o entendimento de Nascimento (2006) de que:
“As crianças aprendem olhando, observando toda a realidade, estão presentes em toda a parte na aldeia e nas áreas circundantes e quase não há punições. A criança tem liberdade, permissividade e autonomia, experimentando e participando da realidade concreta do dia a dia, seus conflitos e contradições, estão perfeitamente articuladas com aprendizagem e responsabilidades” (Nascimento, 2006: 8).
Desta forma, defende Aquino (2006) que o Guarani/Kaiowa precisa negociar o conteúdo sistematizado (na escola) com o sistema tradicional de educação numa relação de ambiguidade para o alcance do mesmo objetivo. Backes e Nascimento (2011) acreditam que os povos indígenas nos instigam a subverter e ressignificar as práticas de colonização e subordinação
Nesse caso de estudo do processo próprio de aprendizagem na aldeia se faz uma investigação de crianças indígenas que possam desenvolver sua cultura num processo dinâmico em que o conhecimento tradicional possibilite o desenvolvimento da cultura e da aprendizagem e se respeite e dialogue com cultura do branco que no passado negou e silenciou o processo de educação intercultural.
Com o estudo dos processos próprios de aprendizagem das crianças indígenas nas aldeias buscamos na visão de Walsh (2009) pensar que estamos colaborando para descolonizar o saber e isso representa uma mistura de sentimentos/pensamentos ambivalentes e também um exercício permanente de descentramento como bem reforça Larrosa (2003) uma vez que se torna uma experiência impronunciável.
Assim também Skliar (2003) nos lembra que na condição de sujeito do conhecimento produzido pelo ocidente é importante que controlemos o ímpeto etnocêntrico/colonizador de nossa racionalidade aceitando nossa incapacidade de vermos o outro na radicalidade de sua diferença. Escutar o outro sem pretensão de compreendê-lo é crucial, pois sem a compreensão e sem o reconhecimento de que há coisas incompreensíveis o sujeito resultará no retorno da mesmidade e da asfixia da diferença.
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Nos relatos se optou por fazer a transcrição fiel das falas dos entrevistados e por isso existem alguns erros de português.
Vejamos alguns relatos indígenas acerca da importância do reconhecimento dos processos próprios de aprendizagem na aldeia. Para Pedro Barbosa:4
“É difícil para as crianças pequena conviver na escola da cidade, as crianças não fala português, quando chove é difícil levar a criança, não consegue ir na rodovia.Quando chove o ônibus não entra, a criança falta e corta a bolsa família. A escola é muito importante as crianças não tão escrevendo bem, os pequenos não estão aprendendo a escrever e a gente precisa de escola bilíngue [onde se ensine o nosso conhecimento]. A gente precisa escrever também na nossa língua, a gente é adulto e não sabe escrever, as crianças pode aprender [no dia a dia]. Se tiver escola na aldeia os adultos também pode estudar, porque hoje a gente não consegue ir para cidade a noite. Na escola da cidade acontece coisa que a crianças não consegue falar pra a professora quando chega em casa é que contar pra gente. Um dia desses outras crianças se reuniram e bateram no Manil, Manuela, Daniela e Bruno. Falaram para a Margarida que colocou as outras crianças de castigo, mas as crianças não querem ir mais na escola. A Daniela também não escreve com a direita, a professora mandou um bilhete que é para ela escrever com a direita. Mas ela só sabe com a esquerda, ela sofre, com a esquerda ela sabe fazer. A educação indígena vai ser melhor por causa da língua [ensinada pelos mais velhos]. A criança tem que aprender português, mas precisa aprender Kaiowá primeiro. Japonês escreve japonês, inglês também escreve na língua outros países também, e o índio? Não pode? Indígena também precisa ler e escrever na língua” (Pedro Barbosa, 2014).
Verificamos que as crianças produzem seus próprios conhecimentos na aldeia, pois isso valoriza a sua própria cultura, seu conhecimento e sua origem. A criança ingressa na escola com um conhecimento proveniente de sua família nuclear como referência e sua escolarização se torna mais concreta se seus conhecimentos fossem desenvolvidos nas práticas pedagógicas escolares.
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Reprodução fiel da entrevista.
- Note de bas de page 6 :
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Guachiré é uma dança típica da cultura Kaiowá em que as crianças, mulheres e toda a comunidade dançam e cantam em agradecimento ao seu deus, às pessoas que as visitam e em dias de festas. Preservam desta forma sua cultura e costumes e manifestam seu descontentamento com a falta de políticas públicas e demarcação de seu território.
“Se a escola for aqui as crianças vão ter vontade de estudar, as crianças não precisa acordar as 4 h da manhã nos dias de chuva e ir a pé, enfrentar lama, porco do mato e outros bicho. Não precisa levantar tão cedo. A escola é mais um passo, é importante a língua e a cultura, a cultura é meu documento se não tiver a cultura não sei qual etnia. Isso que a gente tá pensando, trazer as crianças, na cidade não tem cultura é mais importante pra nóis” (Adalto Barbosa, 2014)5.
“Se tiver escola, vai ter guachiré6” (Janaina Barbosa, 2014).
“Indígena é diferente a gente ensina na língua as crianças ficam se enrolando, quando coloquei o Uilian na escola de Douradina ele sabia alguma coisa, lá é bilíngue, quando chegou em Rio Brilhante ficou difícil, tudo enrolado, deve ser o português” (Nirda Barbosa, 2014).
Por meio destes relatos verificamos que o processo próprio de aprendizagem ocorre de fato na aldeia pela participação da criança indígena na vida cotidiana, acompanhada de perto dos exemplos dos pais e dos mais velhos. Quando os adultos e velhos ensinam as crianças indígenas, se articula o passado e o presente onde se traz os elementos históricos, religiosos reforçando a forma de pensar e modo de ser e agir do povo Kaiowá.
Portanto, os processos próprios de aprendizagem para as crianças indígenas é o receber o ensinamento, aprender o exemplo e não fugir da responsabilidade de ação. O papel dos adultos em relação à criança indígena é incentivar, é fazer juntos, fazer para que o outro aprenda, pois desta forma vão assumindo o seu papel na vida da comunidade.
IV- Dialogando com algumas concepções da Interculturalidade
A ausência de estudos sobre os processos próprios de aprendizagem de crianças indígenas Kaiowá em situação de acampamento denotam a existência de uma concepção arraigada no senso comum, qual seja a de que as crianças teriam que frequentar a escola para aprender. Isso porque com a ida para a escola receberiam uma educação que lhes possibilitasse um desenvolvimento econômico e social melhor no mundo dos “brancos”.
Ocorre que apenas indo para a escola, as crianças indígenas deixariam de serem “depositárias” dos saberes historicamente acumulados pela oralidade dos grupos, o que geralmente é buscado a partir da interlocução com pessoas adultas e idosas.
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Ñande reko pone de relieve este aspecto de diferenciación cultural, que incluye un tipo especial de organización social, una lengua y un lenguaje propio (con sus formas peculiares de ‘pensamiento’ y de ‘simbolización’), una religión tradicional, una economía característica, una lengua propia. (...) El ñande reko hace que el Paĩ se considere, se sienta, se piense y se diga diferente. (Melià et al., 2008:105)
Neste sentido, acreditamos que as crianças indígenas dentro da aldeia desenvolvem uma profunda relação física, afetiva e simbólica com a terra, entendida aqui como território, espaço próprio de constituição e vivência identitária. Esta relação é chamada pelos próprios indígenas de ñande reko7, quer dizer, “nosso jeito de ser”.
O ñande reko representa o jeito tradicional de ser Guarani que engloba a aldeia de acampamento, o equipamento doméstico e de trabalho, os mitos, as rezas, as estratégias para subsistência e também uma área de domínio ecológico.
Por este motivo, a comunidade indígena na aldeia de acampamento representa o centro de seu território tradicional, conhecido como ñande reta, o “nosso território”, isto é, o espaço para a continuidade de seu modo de ser e estar no mundo.
Segundo Neumann (2008) a relação com o exterior fundamenta a manutenção do ñande rekó pois:
“[...] Isto nos permite, agora, tirar uma conclusão em duas partes: por um lado, é possível falar em manutenção do ñande rekó, pois o rastreamento das associações entre humanos e não-humanos nos dois contextos abordados aponta semelhanças fundamentais que lhes dão uma unidade indiscutível. Por outro lado, é possível também identificar uma série de aspectos particulares a cada conjunto, o que indica a existência de manifestações locais deste jeito de ser, resultantes da história particular de cada coletivo” (Neumann, 2008: 160).
Nesse sentido, é necessário manter a “pedagogia indígena” que possibilite o desenvolvimento do processo próprio de aprendizagem com a interação e integração das crianças indígenas em situação de acampamento para que seus saberes culturais sejam mantidos e valorizados.
Tendo em vista a situação histórica do povo Kaiowá no sul do estado de Mato Grosso do Sul, caracterizada por significativa perda do território tradicional, com a consequente fragmentação das relações sociais e com o ambiente, a realidade dos acampamentos é uma das tentativas de resistência e superação da imposição histórica do confinamento.
Esta é uma realidade por si só provisória e, de certo modo, já aprofundada em estudos antropológicos e pedagógicos com teses e dissertações, mas não a partir da realidade da criança indígena que vive em situação de acampamento. Para tratar de interculturalidade entendemos que esta perspectiva enfoca o desenvolvimento da transformação social que assume um caráter ético e político para a construção de uma democracia com justiça social.
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Diretora do Doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos, Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Equador.
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Sociólogo y teórico político peruano. Actualmente es director de la cátedra América Latina y la Colonialidad del Poder en la Universidad Ricardo Palma, en Lima y profesor del departamento de sociología de la Universidad de Binghamton en Binghamton, Nueva York, Estados Unidos.
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Semiólogo argentino y profesor de literatura en la Universidad de Duke, en Estados Unidos. Se le conoce como una de las figuras centrales del poscolonialismo latinoamericano y como miembro fundador del Grupo modernidad/colonialidad.
O grupo Modernidade/Colonialidade tem se destacado na defesa de temas referentes à interculturalidade. Para apresentar deste grupo nos apoiamos em Luciana Ballestrin (2013) que traz a constituição, a trajetória e o pensamento deste grupo que se formou no final dos anos 1990. A produção deste grupo tem como uma de suas referências as contribuições do ponto de vista político, social e cultural de intelectuais latino-americanos como Catherine Walsh8, Aníbal Quijano9 e Walter Mignolo10 que aprofundam a discussão de categorias como geopolítica do poder e do saber.
O grupo sugere a que a “identificação e a superação da colonialidade do [...] saber apresenta-se como um problema desafiador a ser considerado pela ciência e teoria política”. A colonialidade do saber refere-se ao caráter eurocêntrico e ocidental como única possibilidade de se construir um conhecimento considerado científico e universal em detrimento de outros conhecimentos de compreensão do mundo e produção de conhecimentos não raro considerados inconsistentes ou ingênuos.
Para Walsh (2005) o conceito de interculturalidade:
“[...] é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro – um pensamento crítico de/desde outro modo -, precisamente por três razões principais: primeiro porque é vivido e pensado desde a experiência da colonialidade [...]; segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global” (Walsh, 2005: 25).
A perspectiva intercultural para a criança indígena é um caminho para o desenvolvimento da pedagogia indígena, pois este caminho desvela os processos de decolonialidade e se constrói espaços de conhecimentos antes inferiorizados que permitam construir sociedades distintas.
Concordamos com Walsh (2005) na defesa da interculturalidade da criança indígena que vive em situação de acampamento como forma de se apresentar os conhecimentos tradicionais adquiridos, pois mais do que uma inter-relação a interculturalidade significa “processos de construção de conhecimentos ‘outros’ de uma prática política ‘outra’, de um poder social ‘outro’, e de uma sociedade ‘outra’, que são formas diferentes de pensar e atuar em relação e contra a modernidade”.
Considerações Finais
Portanto, o presente artigo é fruto mais de elementos iniciais de pesquisa teórica e bibliográfica, do que resultado do trabalho de campo, ainda inicial e preliminar, como parte do desenvolvimento de pesquisa de doutorado. Ainda assim, é possível inferir acerca da importância dos arranjos familiares e da força da tradição cultural do grupo, que mesmo em situações precárias, conseguem manter práticas de transmissão de saberes entre as gerações, o que identificamos como processos próprios de aprendizagens, de crianças Kaiowá.
Os elementos da interculturalidade se fazem presente e necessários, em especial nos diálogos entre os saberes tradicionais indígenas e aqueles advindos da sociedade chamada de Ocidental, que compõe o entorno, ou sociedade envolvente.