O acirramento da violência doméstica contra a mulher no Brasil durante a pandemia da COVID-19 The increasing of domestic violence against women in Brazil during the COVID-19 pandemic
Este trabalho, alicerçado no método dedutivo e na pesquisa bibliográfica, aborda a desigualdade de gênero e o acirramento da violência contra a mulher no Brasil em face da imposição de confinamento durante a pandemia da COVID-19. O principal objetivo é apontar evidências sobre o agravamento da violência doméstica e familiar decorrente do maior tempo de convivência das vítimas com seus agressores. Para tanto, trata-se da histórica desigualdade de gênero no Brasil e apresenta-se uma visão genérica sobre o arcabouço normativo e as políticas públicas de amparo à mulher, trazendo-se alguns apontamentos sobre medidas adotadas no curso da pandemia. Os resultados atestam que a violência doméstica e familiar contra as mulheres se intensificou com o confinamento, trazendo-lhes nefastas consequências e evidenciando que, apesar de algumas iniciativas pontuais no período pandêmico, a desigualdade de gênero persiste e nem sempre a legislação e as políticas públicas têm sido eficazes tanto no que tange à prevenção da violência quanto no que diz respeito ao atendimento às vítimas. Desse modo, são necessários continuados esforços em prol da conscientização de que é imperiosa a implantação de estratégias mais efetivas de proteção à mulher.
Ce travail, qui repose sur la méthode déductive et une recherche bibliographique, aborde l'inégalité de genre et l'intensification de la violence contre les femmes au Brésil face à l'imposition de l'enfermement pendant la pandémie COVID-19. L'objectif principal est de mettre en évidence les preuves de l'aggravation de la violence domestique et familiale en raison de la plus longue période pendant laquelle les victimes vivent avec leurs agresseurs. À cette fin, l'inégalité historique entre les genres au Brésil est abordée et une vision générique du cadre normatif et des politiques publiques de protection envers les femmes est présentée, en évoquant les mesures adoptées au cours de la pandémie. Les résultats attestent que la violence domestique et familiale à l'égard des femmes s'est intensifiée avec l'enfermement. Les conséquences, néfastes, qui en résultent, montrent qu'en dépit de certaines initiatives spécifiques pendant la pandémie, l'inégalité entre les genres persiste. La législation et les politiques publiques n'ont pas toujours été efficaces pour prévenir la violence et pour aider les victimes. Par conséquent, des efforts continus sont nécessaires pour faire prendre conscience que la mise en œuvre de stratégies plus efficaces pour protéger les femmes est impérieuse.
Este trabajo, basado en el método deductivo y la investigación bibliográfica, aborda la desigualdad de género y la intensificación de la violencia contra las mujeres en Brasil ante la imposición del encierro durante la pandemia COVID-19. El objetivo principal es señalar evidencias del agravamiento de la violencia doméstica y familiar por el mayor tiempo de convivencia de las víctimas con sus agresores. Para eso, aborda la desigualdad histórica de género en Brasil y presenta una visión general sobre el conjunto de leyes y las políticas públicas de apoyo a las mujeres, aportando algunas notas sobre medidas adoptadas en el curso de la pandemia. Los resultados atestiguan que la violencia doméstica y familiar contra la mujer se intensificó con el encierro, provocando consecuencias nocivas y mostrando que, a pesar de algunas iniciativas puntuales en el período pandémico, persiste la desigualdad de género y no siempre la legislación y las políticas públicas han sido efectivas tanto en materia de prevención de la violencia cuanto en la prestación de asistencia a las víctimas. Por lo tanto, se necesitan esfuerzos continuos para crear conciencia de que la implementación de estrategias más efectivas para proteger a las mujeres es imperiosa.
This paper, based on the deductive method and bibliographic research, addresses gender inequality and the intensification of violence against women in Brazil in the face of the imposition of confinement during the COVID-19 pandemic. The main objective is to point out evidences of the worsening of domestic and family violence due to the longer coexistence of victims with their aggressors. For this, there is an approach about the historical gender inequality in Brazil and a generic vision is presented on the normative framework and public policies of protection for women, indicating some measures that were taken in the course of the pandemic. The results attest that domestic and family violence against women has intensified with the confinement, bringing dire consequences and showing that, despite some initiatives during the pandemic period, gender inequality persists, as well as legislation and public policies have not always been effective in order to avoid the violence or to assist the victims. So, it is necessary to continue efforts to raise awareness that it is imperative to implement more effective strategies for women protection.
1. Introdução
Tema que perpassa a história de muitas sociedades ao longo do tempo, a desigualdade de gênero, no Brasil, é uma realidade ainda não superada, apesar dos muitos avanços normativos, em especial, após o advento da Constituição Federal de 1988, denominada Carta Cidadã, que rompeu paradigmas e colocou o ser humano no centro de sua proteção. Por mais que, desde então, conquistas tenham emergido em consequência das transformações sociais, do surgimento de novos costumes e valores, a mulher ainda enfrenta uma série de dificuldades, ficando, muitas vezes, em situação de vulnerabilidade em decorrência da violação de direitos que, no plano formal, lhe são assegurados.
Tida por muitos como objeto sexual, sofre violência de toda a sorte, ora na família, ora no trabalho, enfim, nas mais diversas situações sociais, não são raras as vezes em que a mulher é tratada como ser inferior, a qual deve ser submissa aos mandos do homem, padecendo de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Sequer a liberdade de terminar um relacionamento que não mais lhe apraz é conferida à mulher, pois, em algumas circunstâncias, tal ruptura pode significar a sua morte. Como corolário de todo esse contexto, é possível afirmar que três relevantes Princípios da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ainda carecem de um longo percurso para a sua eficácia quando se trata de mulheres: o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade e o da liberdade.
Um dos diplomas brasileiros de grande relevância no que diz respeito à proteção da mulher é a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual se soma a outras legislações que podem ser invocadas. Nessa senda, este estudo está lastreado na hipótese de que nem sempre é possível garantir a eficácia dessas legislações em um país de dimensões continentais como o Brasil e com um número alarmante de ocorrências de violência contra a mulher, número esse que aumentou no curso da pandemia da COVID-19 consoante apontam alguns estudos levados a cabo.
Nessa perspectiva, o presente artigo, um estudo bibliográfico que se ancora no método dedutivo, objetiva evidenciar que o confinamento, durante a pandemia, ampliou a violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil, violência essa que abarca não apenas as agressões físicas e psicológicas e deixa marcas indeléveis nem sempre passíveis de recuperação, fazendo com que muitas dessas mulheres se isolem do convívio familiar e social. Tal isolamento, além de trazer repercussões às próprias mulheres vítimas de violência, a exemplo da ideação suicida, tem o condão de espraiar seus reflexos aos filhos e familiares, trazendo diversas consequências negativas que reverberam, direta ou indiretamente, no contexto da sociedade.
Para possibilitar tal discussão, trazem-se apontamentos sucintos sobre a histórica desigualdade de gênero no Brasil, seguidos de uma abordagem na qual se empreende a tentativa de ilustrar evidências que atestam o acirramento da violência de gênero durante a pandemia da COVID-19. Na sequência, dadas as limitações impostas a um artigo, são apresentadas algumas das políticas públicas existentes no Brasil que visam a coibir a violência contra a mulher. Por derradeiro, apresentam-se considerações que não se destinam propriamente ao encerramento da discussão, mas, sobretudo, objetivam conclamar a uma constante reflexão em torno da desigualdade de gênero, problemática cujo enfrentamento impõe uma série de desafios não só ao Brasil, mas a todos os países que têm na dignidade e na igualdade um de seus fundamentos.
2. O Ordenamento Jurídico Brasileiro em Face da Histórica Desigualdade de Gênero
Ao longo do tempo, as mulheres ficaram restritas à vida doméstica e à reprodução biológica, ao passo que o poder era essencialmente masculino (Souza, 2019). Foi a partir do final do século XX que as
[...] relações simbolicamente construídas entres os sexos foram abaladas nas suas estruturas pela emergência de um lado social feminino que rejeitou as noções solidificadas dos conceitos de superioridade e inferioridade (Almeida, 2011: 166).
Especificamente no Brasil, durante o século XX, prevaleceram os princípios patriarcais e discriminatórios sedimentados no Código Civil de 1916, mas as mulheres tiveram conquistas parciais nesse período: o direito ao voto, a ocupação de cargos políticos, a conquista de graus elevados de educação, maior participação no mercado de trabalho, bem como o advento de diplomas legais destinados à sua proteção (Alves & Cavenaghi, 2013).
Nesse percurso, a Constituição Federal de 1988 representou um divisor de águas, uma vez que estabeleceu a igualdade jurídica entre homens e mulheres, erigindo-a a direito e garantia fundamental. Com isso, encerrou-se um ciclo de “séculos de poder patriarcal, que outorgava ao marido a chefia da sociedade conjugal” (Carvalho, 2018: 101). No âmbito da família, essa igualdade ficou consagrada na norma que determina que ambos os cônjuges são responsáveis pela condução da entidade familiar, assim como a eles incumbe, em condições de igualdade, o exercício do poder familiar em relação à prole (Carvalho, 2018).
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O movimento feminista trata-se de um movimento libertário que buscou não apenas espaço para a mulher em diversos âmbitos (trabalho, vida pública, educação), mas lutou por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, almejando para estas liberdade e autonomia no que tange a decidir sobre sua vida e o seu corpo (Pinto, 2010: 16). No Brasil, esse movimento atravessou várias décadas e pode-se dizer que a sua vitória é inquestionável ao se verificar a conquista de vários direitos, entre eles, “[...] a mulher frequentar universidades, escolher profissão, receber salários iguais, candidatar-se ao que quiser...” (Duarte, 2003: 151).
A paulatina conquista de igualdade, todavia, é fruto de uma longa trajetória pautada por lutas e constantes reivindicações. Nesse sentido, insta fazer menção ao movimento feminista1, que, mesmo sendo ridicularizado por uma parcela da população, levou as mulheres à conquista da tão sonhada liberdade e igualdade (Dias, 2016). Esse movimento representou uma ruptura e acarretou, segundo Almeida (2011), uma das transformações mais radicais, na medida em que alterou a posição das mulheres na sociedade ocidental. O feminismo alterou relações de autoridade, trouxe repercussões para a estrutura tradicional da família e “[...] promoveu um rompimento com uma forma de alienação considerada absolutamente natural por séculos, definida pela submissão das mulheres aos homens” (Almeida, 2011: 167).
Tais conquistas não foram suficientes para que a igualdade em relação ao gênero masculino fosse consubstanciada de maneira concreta no seio da sociedade, uma vez que subsistem discriminações salariais, segregação ocupacional, dupla jornada de trabalho, discriminações e preconceitos, evidenciando que “[...] ainda falta muito para o Brasil chegar a uma justa equidade de gênero” (Alves & Cavenaghi, 2013: 83).
Sob essas lentes, consoante a contribuição trazida pela psicanálise, não é possível falar em igualdade sem levar em conta o campo da objetividade, o qual perpassa pelas subjetividades masculina e feminina. Assim, conferir igualdade à mulher não significa lhe conceder o tratamento privilegiado que sempre foi destinado aos homens, pois isso implicaria reconhecer que o modelo é o masculino.
Importa analisar a efetiva condição da mulher para verificar se realmente existe igualdade ou se está apenas no plano formal. Ademais, não se pode olvidar que homens e mulheres são diferentes, embora sejam iguais em direitos, o que implica dizer que, apesar da igualdade jurídica, é impossível afastar as diferenças. Decorre dessa realidade a constatação de que “Certas discriminações são positivas, pois, na verdade, constituem preceitos compensatórios como solução para superar as diferenças” (Dias, 2016: 105).
Nessa perspectiva, é mister compatibilizar a igualdade jurídica com as diferenças, pois o respeito a estas é essencial para resguardar a dignidade da pessoa humana. É preciso, portanto, “[...] ir além da igualdade genérica e incluir no discurso da isonomia o respeito às diferenças, pois a construção da cidadania somente se consegue com alteridade e respeitando as diferenças” (Carvalho, 2018: 102).
Na legislação brasileira, o rompimento da hegemonia masculina teve como um de seus marcos o Estatuto da Mulher Casada, em 1962, devolvendo à mulher a plena capacidade, uma vez que, anteriormente, ela figurava no plano das coisas, ou seja, era considerada pertencente ao marido, como se dele fosse propriedade (Rosa, 2019). Mesmo assim, a mulher ainda se encontrava em uma condição de submissão, e o rol de direitos e deveres a ela inerentes era diferente em relação ao homem. Nesse percurso, apenas em 1977, com o advento da Lei do Divórcio, a condição da mulher apresentou alguns avanços mais significativos, entre eles, o fato de ter se tornado facultativa a permanência do sobrenome do cônjuge quando da dissolução do casamento, afastando-se também a apuração da culpa pela ruptura dos laços conjugais e libertando, assim, a mulher desse tipo de estigma, o qual persistiu por longa data (Dias, 2016).
É mister referir que a própria noção de família, ao sofrer alterações que estão estampadas tanto na legislação quanto na doutrina e na jurisprudência, trouxe uma nova perspectiva para a mulher no seio da entidade familiar e da sociedade. O reconhecimento de outras formas de constituir família que não a meramente oriunda do matrimônio e dos laços biológicos revela a reconstrução da identidade do gênero feminino, distanciando-se da visão instrumental de outrora, a qual colocava a mulher como garantidora da família e permitia que a violência por ela sofrida no contexto doméstico ficasse invisível aos olhos da sociedade, inclusive do Poder Público. Nesse novo prisma, o § 8º do artigo 226 da Carta Cidadã assegura a proteção do Estado a todos os integrantes da família a fim de coibir a violência entre os seus membros (Duprat, 2015).
Na caminhada de desconstrução da visão instrumental da mulher, outros marcos merecem ser citados, quais sejam, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, que versaram sobre as uniões homoafetivas, bem como o julgamento relativo ao aborto de feto anencéfalo. As ações atinentes às uniões homoafetivas foram julgadas procedentes, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, reconhecendo-se como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo e ampliando-se, desse modo, a noção corrente de família (Rosa, 2018). A possibilidade de aborto de feto anencéfalo, por sua vez, reforçou a autonomia da mulher tanto em relação ao seu corpo quanto à maternidade. Conforme sintetiza Duprat (2015: 169), “Talvez ainda não se tenha corretamente dimensionado o potencial transformador desses três precedentes. Decididamente anunciam novos tempos para a questão de gênero no Brasil”.
Cabe assinalar que, até 2006, o Brasil não tinha uma legislação destinada ao trato da violência contra a mulher, diferentemente de 17 países da América Latina. Só em 2006 é que adveio a Lei nº 11.340, a partir de uma denúncia feita por Maria da Penha Maia Fernandes, com base na qual a Comissão Interamericana de Direitos Humanos constatou a omissão do Brasil em proteger a denunciante. Tal lei começou efetivamente produzir efeitos em 2012, após o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a sua constitucionalidade (Duprat, 2015).
Segundo Duprat, as reivindicações identitárias das mulheres estão assentadas em dois princípios: o da dignidade da pessoa humana e o do pluralismo. A eles se soma um conjunto normativo que garante “[...] à mulher autonomia para eleger, a todo o tempo, os seus variados projetos de vida, e defendê-los nas mais diferentes relações que estabelece ao longo de sua existência” (Duprat, 2015:168). O que se verifica, no entanto, é que, apesar de todas as conquistas, inclusive na seara normativa, algumas vezes, as próprias decisões judiciais parecem não acolher tais avanços, muito pelo contrário, empregam concepções ultrapassadas e eivadas de preconceito e tratamento desigual.
A luta das mulheres, por conseguinte, não deve se dissociar dos campos da justiça e do Direito, sendo necessário ter presente que toda situação de violência implica violação dos direitos humanos, os quais são inerentes a qualquer pessoa, independentemente de gênero.
3. O Acirramento da Violência Doméstica com a Pandemia da COVID-19
No Brasil, de maneira cristalina, a Lei Maria da Penha assim define a violência doméstica e familiar contra a mulher: “[...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial [...]” (Brasil, 2006).
Nesse norte, é preciso pontuar que:
[...] a distribuição social da violência reflete a tradicional divisão dos espaços: o homem é vítima da violência na esfera pública, e a violência contra a mulher é perpetuada no âmbito doméstico, onde o agressor é, mais frequentemente, o próprio parceiro (Jesus, 2015: 7-8).
Trata-se, na concepção de Silva (2013), de uma realidade que assola muitos países, a qual é invisível e covarde. Sob tal matiz, Barsted acrescenta que:
A cotidianidade dessa violência tem o poder de ofuscar sua visibilidade e descriminalizá-la no imaginário social e até mesmo, especificamente, no imaginário das mulheres (2016: 17).
De acordo com Alencar et al. (2020), a violência contra a mulher é fruto das desigualdades históricas baseadas no gênero. Ela é de cunho estrutural e cultural, cujo enfrentamento se torna complexo e multissetorial, além de depender da conscientização de cada indivíduo, das famílias e da sociedade em geral.
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O feminicídio é uma das qualificadoras do crime de homicídio contra a mulher inerentes ao sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menospreza e discrimina a condição da mulher (Brasil, 2015).
No Brasil, o cenário desse tipo de violência veio a se agravar com a crise sanitária da pandemia da COVID-19. A redução do contato social como uma das medidas para evitar a disseminação do vírus Sars-Cov-2 e o consequente confinamento fizeram com que as mulheres ficassem reclusas com seus agressores, o que levou ao acirramento da violência (Marques et al., 2020). Dados divulgados no Anuário de Segurança Pública apontam que o confinamento fez crescer os casos de feminicídio2. Somente no primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 1,9% de casos se comparado ao mesmo período de 2019, totalizando a morte de 648 mulheres vítimas dessa violência (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).
Vieira, Garcia & Maciel (2020) afirmam que vários efeitos negativos podem ser atribuídos ao confinamento no curso da pandemia da COVID-19. As mulheres passaram a ser vigiadas com mais frequência por seus agressores e, em alguns casos mais graves, foram até impedidas de terem contato com seus amigos e familiares. Além de ter sido ampliado o espaço de ação dos agressores, a manipulação psicológica acentuou-se. Os homens passaram a ter mais controle sobre as finanças domésticas, o que até então praticamente não possuíam, pois essas, em geral, estavam sob o domínio das mulheres. Soma-se a isso a sobrecarga com as tarefas domésticas advindas do aumento do tempo de permanência das pessoas em casa, ou seja, as mulheres mantiveram-se confinadas e constantemente solicitadas ao atendimento dos filhos e dos cônjuges/companheiros, padecendo de cansaço, sofrimento e ausência de interações que lhes permitissem ter momentos de lazer.
Reger, Stalney & Joiner (2020) alertam para a possibilidade de as medidas impostas para frear a contaminação pelo coronavírus provocarem um aumento dos casos de suicídio frente a uma variedade de fatores psicossociais associados à saúde mental. Desse modo, considerando os fatores de risco trazidos pelo confinamento, que envolvem questões psicológicas, culturais, sociais e ambientais, é necessário um olhar mais atento para as mulheres vítimas de violência, principalmente, para aquelas que possuem histórico de tentativa de suicídio e/ou de automutilação (Friocruz, 2020).
A pandemia também trouxe repercussões comunitárias, pois diminuiu “[...] a coesão social e o acesso aos serviços públicos e instituições que compõem a rede social dos indivíduos” (Marques et al., 2020: 2). Como as atividades de igrejas, creches, escolas e serviços de proteção social foram interrompidos e/ou reduzidos, e o foco dos serviços sociais e de saúde esteve voltado para as ações de atendimento a pacientes e ao combate da infecção pelo coronavírus, a busca das mulheres por ajuda nas redes de apoio e proteção ficou prejudicada. Esses fatores contribuíram para a manutenção e o aumento dos casos de violência (Marques et al., 2020).
Quanto a esse aspecto, frisa-se que a desigualdade de gênero deixa as mulheres em situação de maior vulnerabilidade, expostas a maiores riscos de violência, sendo indispensável a oferta de serviços de prevenção, mitigação de riscos e resposta, situação essa precária no curso da pandemia em comento, na medida em que os recursos foram realocados para responder à grave crise da saúde (United Nations Population Fund, 2020).
É possível apontar evidências do crescimento da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil por meio do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o qual demonstra que, em 2020, houve um total de 75.757 denúncias: 38.179 foram realizadas no primeiro semestre, e 37.578, no segundo (Brasil, 2020a). Com fulcro nesses dados, nota-se um aumento considerável dos casos de violência se comparados ao ano de 2019, quando houve um total de 67.438 denúncias (Brasil, 2020b).
Segundo dados do Grupo Banco Mundial, nos primeiros dois meses de confinamento no Brasil – março/abril de 2020 –, houve um aumento de 22,2% nos casos de feminicídio e de 27% nas denúncias ao Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher para denúncias de violência oferecida pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos). Ou seja, em 2020, foram registradas 19.915 denúncias, ao passo que, em 2019, no mesmo período, ocorreram 15.683. Tais números são alarmantes e ratificam a necessidade de ações e políticas públicas voltadas a coibir esses casos de violência (The World Bank, 2020).
De acordo com Marques et al. (2020), os principais gatilhos que contribuíram e têm contribuído para a elevação dos casos de violência durante a pandemia da COVID-19 são o consumo de bebidas alcoólicas e de substâncias psicoativas, a incerteza quanto ao futuro, o distanciamento social, o medo de adoecer, a diminuição de renda e o estresse do agressor. Nesse passo, destaca que a necessidade de distanciamento social foi o principal fator que contribuiu para o aumento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
O aumento dos períodos de convivência familiar ao longo do dia, principalmente nas famílias de baixa renda que vivem em residências menores, sem muitos cômodos, contribuiu para o incremento da violência, cabendo pontuar que muitas dessas vítimas não chegaram a denunciar seus agressores, pois se sentiram inseguras, em especial, nos casos em que não era possível contar com o apoio da família. A sobrecarga da mulher, que viu potencializado, com a pandemia, o acúmulo de tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, de idosos e doentes, foi um fator que contribuiu para reduzir a “[...] sua capacidade de evitar o conflito com o agressor, além de torná-la mais vulnerável à violência psicológica e à coerção sexual” (Marques et al., 2020: 2).
Outro fator paralisante foi a preocupação de essa violência vir também a atingir os filhos. Além disso, a dependência financeira elevou o desencorajamento das mulheres para romper as situações de agressão, mormente, diante da estagnação econômica e da elevação das taxas de desemprego, de modo que não conseguiram vislumbrar outra saída a não ser a de permanecer na relação abusiva, submetendo-se às agressões e aos maus-tratos (Marques et al., 2020).
Em vista disso, as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar encontram-se “[...] castradas em seus potenciais de transcender a situação atual e de confiar em novos e melhores cenários” (Santos et al., 2020: 9). A pandemia da COVID-19, portanto, apresenta-se como um agravante e torna-se um “[...] empecilho à autorrealização da mulher vítima de violência de gênero” (Santos et al., 2020: 9).
A violência contra a mulher é um ato extremado, oriundo de uma sociedade que ainda não oferece condições igualitárias a homens e mulheres. Apesar da existência de diplomas legais que, pela sua característica coercitiva, deveriam ter o condão de eliminar a desigualdade de gênero, resta abandonar a visão ultrapassada que naturaliza as mulheres como cuidadoras exclusivas e, mais do que isso, é preciso valorizar as suas habilidades públicas e políticas (Alencar et al., 2020). É diante desse cenário que urge a necessidade de se fortalecer ações nas diversas frentes, tanto por parte do Estado quanto por intermédio de iniciativas privadas (Alencar et al., 2020).
Para fomentar tal discussão, na seção que segue, apresentam-se apontamentos sobre a legislação e as principais políticas públicas de proteção à mulher no Brasil, bem como aquelas implementadas para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher durante a pandemia da COVID-19.
4. As Políticas Públicas e o Arcabouço Normativo de Proteção à Mulher no Brasil
A violência de gênero permanece sendo uma das principais fontes de discriminação e exclusão social. Esse tipo de violência, em especial, a que ocorre no seio familiar, tem levado vários Estados, inclusive o Brasil, à instauração de políticas públicas objetivando criminalizar a violação dos direitos das mulheres. No entanto, as respostas para os casos de violência de genêro não se esgotam, exclusivamente, no Direito, é necessário possibilitar formas de prevenção e apoio às vítimas (Duarte & Machado, 2015).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada “Convenção de Belém do Pará”, concluída em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário de Sessões da Assembleia Geral, em seu capítulo I, artigo 1, define a violência contra a mulher como “[...] qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1994). Essa Convenção foi promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, estabelecendo, em seu artigo 1º, que “[...] deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém” (Brasil, 1996). De acordo com Barsted (2016), tal Convenção representou um paradigma para a elaboração de uma política pública nacional destinada ao enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres. Desse modo, constitui um marco jurídico na construção da Lei Maria da Penha.
A Lei Maria da Penha explicita, em seu artigo 6º, que “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos” (Brasil, 2006). Nessa ótica, Bianchini (2015) afirma tratar-se de um significativo avanço considerar a violência de gênero como forma de afronta aos direitos humanos, pois deles não se pode dissociar os direitos das mulheres, ou seja, sem o respeito aos direitos das mulheres, pessoas humanas e cidadãs, não se pode falar em garantia universal de direitos.
Consoante a lei em tela, considerada uma das três mais avançadas do mundo de acordo com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, a violência doméstica e familiar se baseia no gênero e deve ser praticada no âmbito doméstico ou familiar, ou em uma relação íntima de afeto, abrangendo as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, nos termos do seu artigo 7º. Esse rol, todavia, não é taxativo, pois nele não estão contemplados todos os tipos de violência contra a mulher. Ilustra-se o fato de o rol não ser taxativo por meio da violência espiritual, que diz respeito a destruir crenças culturais ou religiosas ou impor determinados sistemas de crenças à mulher (Bianchini, 2015).
Embora tal conduta não esteja explicitada na Lei Maria da Penha, consiste em uma forma de violência, a exemplo também da violência política, quando baseada no gênero, em que o cônjuge não permite que a esposa concorra a cargo político. Desse modo, o conceito legal de violência doméstica e familiar contra a mulher implica a combinação dos artigos 5º e 7º da Lei Maria da Penha. Ademais, para a caracterização da violência, não é exigido que vítima e agressor convivam ou tenham convivido sob o mesmo teto (Bianchini, 2015).
Impende destacar que o conceito de violência na lei em comento possui um sentido sociológico, o qual nem sempre encontra equivalente na seara do Direito Penal, que classifica a violência como fisíca ou corporal, moral ou imprópria. É nesse prisma que se considera violência contra a mulher o menosprezo a ela dirigido de forma a lhe diminuir a autoestima, conduta denomida de violência psicológica. Ainda que a legislação penal não a caracterize como crime, estão previstas várias ações assistenciais e de prevenção que podem ser prestadas às mulheres vítimas desse tipo de violência (Bianchini, 2015).
Se, por um lado, a Lei Maria da Penha, que é restrita à violência doméstica e familiar, protege os direitos de mulheres, por outro, restringe direitos de agressores. Foram necessárias situações específicas para dar ensejo à sua aplicação: “[...] brutalidade, institucionalização da violência, frequência, reiteração, permanência, intimidação e elevadíssimos índices” (Bianchini, 2015: 223). Em síntese,
[...] decorre de um histórico de discriminação pautado por uma cultura machista que ainda prepondera na sociedade, é uma lei de exceção. Ela busca prioritariamente criar condições de empoderamento para as mulheres [...] (Bianchini, 2015: 221).
Trata-se, por conseguinte, de uma lei de ação afirmativa, que visa à conquista da igualdade de fato entre o homem e a mulher (Bianchini, 2015).
No que se refere especificamente às ações voltadas para o enfrentamento da violência à mulher durante a pandemia da COVID-19, em 2 de abril de 2020, foi anunciado o lançamento de novos canais de atendimento para denúncias de violência doméstica e de outras violações de direitos humanos. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) anunciou a criação de um aplicativo, o qual foi intitulado Direitos Humanos BR. Em 15 de abril de 2020, foi lançada a campanha oficial para a conscientização e o enfrentamento da violência doméstica por meio de parceria entre o MMFDH e o Ministério da Cidadania, objetivando incentivar as denúncias de violência contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes (Alencar et al., 2020).
Nesse passo, cumpre destacar a Lei nº 14.022, de 07 de julho de 2020, que veio garantir a funcionalidade dos serviços de proteção às mulheres enquanto perdurar o estado de calamidade pública, considerando tais serviços essenciais. Assim, garantiram-se o registro de ocorrência por meio eletrônico e também por intermédio de telefones de emergência de órgão de segurança pública, a regular contagem dos prazos processuais, as concessões de medidas protetivas, o atendimento às partes, entre outros serviços necessários para a proteção das mulheres (Brasil, 2020e).
Têm-se também algumas políticas governamentais criadas e aplicadas por alguns estados brasileiros, a exemplo de São Paulo, que implementou o serviço de denúncias de violência contra a mulher em formato on-line. O Rio Grande do Sul, por sua vez, aumentou a Patrulha Maria da Penha e criou serviços de assistência pelo aplicativo WhatsApp e de denúncia on-line. O Distrito Federal manteve abertos os serviços presenciais necessários e criou campanhas de comunicação e serviços com suporte on-line. O Acre adotou aplicativos para informações e denúncias (The World Bank, 2020).
No Espírito Santo e no Amazonas, os governos criaram e divulgaram cartilhas informativas sobre como reconhecer as situações de violência, orientando as mulheres acerca de como devem agir nessas situações e onde procurar ajuda (Alencar et al., 2020). Ademais, é importante referir a ação criada pelo município de Teresina, capital do estado do Piauí, onde os assistentes sociais ofereceram apoio psicológico por meio de mensagens de áudio para as mulheres que se encontravam sob risco de violência. Já o Governo Federal do Brasil inaugurou o plano nacional de contingência, voltado ao enfrentamento da violência contra a mulher durante a pandemia da COVID-19, trazendo orientações e campanhas de conscientização acerca dos serviços e das medidas existentes para prevenção e resposta (The World Bank, 2020).
Além disso, existem ações e projetos da sociedade civil que têm contribuído para a criação de uma rede de proteção e apoio às mulheres vítima de violência, como os projetos organizacionais Justiceiras e Mapa do Acolhimento, que reúnem profissionais de diversas áreas – psicólogos, advogados, assistentes sociais etc. – com o intuito de prestar atendimento jurídico, assistência psicológica e social. Outra iniciativa importante é a do aplicativo 99, de transporte individual, que fornece desconto às mulheres vítimas de violência para viagens até as delegacias de polícia, visando a incentivar as mulheres a denunciarem os seus agressores (The World Bank, 2020).
Salienta-se, igualmente, a campanha de apelo à comunidade para denunciar agressões, conclamando as pessoas a não ficarem inertes em face da violência doméstica. Esse tipo de campanha já vinha sendo feito e foi reforçado a partir das determinações que impuseram o distanciamento social (Alencar et al., 2020).
Tratando-se de medidas de âmbito municipal, em 18 de março de 2020, a Câmara Municipal de São Paulo promulgou a Lei nº 17.320, regulamentada pelo Decreto nº 60.111, de 08 de março de 2021, que visa a garantir auxílio-aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica em situação de extrema vulnerabilidade. Em seu artigo 2º, assim preceituou:
Será concedido auxílio aluguel, de caráter pessoal e intransferível, às mulheres vítimas de violência doméstica em situação de extrema vulnerabilidade, sendo o benefício financeiro destinado à complementação das despesas da família para fins de moradia (Câmara Municipal de São Paulo, 2020).
Outra medida importante foi a trazida pela Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019, que alterou a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), acrescendo os §§ 4º, 5º e 6º ao artigo 9º e versando sobre a responsabilidade do agressor em ressarcir a mulher pelos danos causados e o erário público pelos custos dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento da vítima de violência doméstica e familiar. O § 4º do artigo 9º da referida lei estabelece in verbis:
§ 4º Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços (Brasil, 2019).
Além disso, cumpre apontar dois Projetos de Lei em andamento no Senado Federal. O primeiro é o Projeto de Lei nº 4.970, de 2020, que busca alterar a Lei Maria da Penha para que passe a dispor, de maneira mais detalhada, acerca da responsabilidade civil do agressor no que tange aos danos materiais e morais causados à vítima de violência doméstica e familiar. Tal projeto prevê, inclusive, que a sentença condenatória estabeleça os valores mínimos para reparação dos danos sofridos pela vítima. Além disso, almeja que a reparação contemple,
[...] quando da violência resultar morte, as relacionadas ao tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família, bem como a prestação de alimentos às pessoas dependentes, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima (Brasil, 2020c).
O outro é o Projeto de Lei nº 4972, de 2020, que busca alterar o artigo 107 do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940), para tornar imprescritível crime contra mulher (Brasil, 2020d).
Desse modo, verifica-se que o Brasil dispõe de um arcabouço normativo que, em conjunto com as políticas públicas implantadas, se destina a amparar a mulher vítima de violência doméstica e familiar, além de ter tomado algumas providências pontuais durante a pandemia da COVID-19. Mesmo assim, o que se verifica é que a mulher continua em situação de vulnerabilidade, sofrendo as agruras da desigualdade de gênero, com a violação de muitos de seus direitos. O confinamento imposto pela pandemia trouxe consigo o aumento de conflitos em decorrência do maior tempo de convívio entre agressor e vítima, fazendo emergir a constatação de que ainda é necessário provocar debates e propor medidas que visem a romper o ciclo histórico de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Considerações Finais
Como anunciado, não existe a pretensão de se encerrar o debate acerca de tema tão relevante quanto a desigualdade de gênero e a violência sofrida pela mulher. Em breves pinceladas, porém, é possível reforçar que, no Brasil, longe de ter sido alcançado um estado ideal de efetiva proteção ao gênero feminino, o que se verifica é que a violência tem se perpetuado e, em se tratando especificamente de violência doméstica e familiar, talvez ainda sejam necessárias políticas públicas mais eficazes e penas mais duras aos agressores.
Não é tarefa fácil para o Estado ter ciência daquilo que se passa no recôndito de cada lar, espaço sagrado de intimidade e protegido pela legislação. No entanto, é justamente nesse espaço que, muitas vezes, as mais severas dores e humilhações são impostas às mulheres, impingindo-lhes um sentimento de menos-valia, o qual pode assumir variados graus e trazer sérias repercussões não somente para as mulheres, mas também para os filhos e a família como um todo. Entre as nefastas consequências, destacam-se: maior risco de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, depressão, revolta, medo, raiva, estresse, insegurança, isolamento, apatia, falta de interação com a família e a sociedade, descuido em relação à prole, ideação suicida. Em síntese, podem ocorrer danos à saúde e à qualidade de vida, os quais se manifestam de diferentes maneiras, seja por meio de distúrbios, seja por meio de crises de pânico, de ansiedade, fobias etc.
Se o Texto Supremo assevera que a família tem plena proteção do Estado, a este incumbe o dever de assegurar que todos os seus integrantes estejam a salvo de qualquer forma de violência, em especial, aqueles que historicamente se encontram em situação de vulnerabilidade, sendo imperioso garantir a dignidade da pessoa humana e a plena fruição de todos os direitos fundamentais.
A pandemia da COVID-19, além de constituir uma ameaça à saúde e à vida das pessoas, escancarou, no Brasil, a continuidade do ciclo da violência de gênero, a qual não é desconhecida, mas agravou-se em virtude das circunstâncias advindas do confinamento. Nesse contexto, revelou-se insuficiente a abrangência de boa parte dos serviços nacionais voltados para a violência contra as mulheres. Exemplo disso se deu em relação a vítimas que tiveram dificuldades no que diz respeito a denúncias e consequentes providências pelo fato de viverem em locais que não dispõem de delegacias especializadas no atendimento à mulher (DEAMs), unidades especializadas da Polícia Civil voltadas a ações de prevenção, proteção e investigação de crimes de violência doméstica, às quais compete o registro de boletins de ocorrência e pedidos de medidas protetivas de urgência. Tal cenário deixou evidente que não basta a existência de políticas públicas, urge que sejam eficazes para todos.
Nesse diapasão, faz-se necessário criar e aperfeiçoar medidas que contribuam para romper o ciclo de violência contra as mulheres. É essencial que os profissionais voltados à proteção das mulheres deem vez e voz a elas, acolhendo-as, buscando resgatar a sua autoestima, valorizando-as como pessoas e preservando os seus direitos a fim de que possam, gradativamente, curar as feridas da alma e exercer, de maneira plena, a cidadania.
Esta sucinta abordagem, por conseguinte, evidencia o acirramento da violência doméstica e familiar e aponta para um único caminho: a necessidade de dar continuidade à luta em defesa dos direitos humanos e do alcance da efetiva igualdade de gênero.