O devir-Nóia das mulheres da Cracolândia: a vida no limiar entre dependência, confinamento e resistência The becoming-nóia of the women of Crackland: life on the threshold between addiction, confinement and resistance

Eduardo Armando Medina Dyna 
y Thainá Letícia Sales 

https://doi.org/10.25965/trahs.3460

Os usuários de crack, comumente conhecido por “Nóias”, circulam em um local itinerante no centro de São Paulo/Brasil, chamado de “Cracolândia”. Rejeitados pelos seus familiares, e incompreendidos pelo Estado e assistentes sociais, os Nóias são excluídos da sociedade não-drogada, que os considera sujos e anormais. Contraposto a esse ideal que é definido como “padrão molar” por Deleuze e Guattari, propomos que o Nóia constitui-se como um devir resistente, e, mais precisamente, a mulher usuária de crack é ainda mais potente em sua resistência. Assim, elas viveriam no limiar entre dependência (sendo quimicamente dependentes da droga), confinamento (em relação aos seus próprios corpos e sociedade), e resistência (formando uma contra conduta ao padrão molar). A partir de uma análise do discurso com revisão documental e bibliográfica, analisamos essas existências, em busca do devir-nóia que emerge das usuárias.

Les consommateurs de crack, communément appelés « Nóias », circulent dans un lieu itinérant au centre de São Paulo/Brésil, appelé « Cracolândia ». Rejetés par leur famille, incompris par l'État et les travailleurs sociaux, les Nóias sont exclus de la société non droguée, qui les considère comme sales et anormaux. Contrairement à cette idée définie comme « force molaire » par Deleuze et Guattari, nous proposons que le Nóia se constitue comme un devenir résistant, et, plus précisément, que la femme consommatrice de crack soit encore plus puissante dans sa résistance. Ainsi, elles vivraient sur le seuil entre la dépendance (être chimiquement dépendant de la drogue), le confinement (par rapport à leur propre corps et à la société), et la résistance (former un contre-conducteur à la force molaire). A partir d'une analyse de discours avec revue documentaire et bibliographique, nous analysons ces existences, à la recherche du devenir-nóia qui émerge des consommatrices de crack.

Los consumidores de crack, comúnmente conocidos como "Nóias", circulan en un lugar itinerante en el centro de São Paulo/Brasil, llamado "Cracolândia". Rechazados por sus familias, y incomprendidos por el Estado y los trabajadores sociales, los Nóias son excluidos de la sociedad no drogadicta, que los considera sucios y anormales. Contra esa idea que Deleuze y Guattari definen como "entidad/institucione molar", proponemos que el Nóia se constituye como un devenir resistente y, más precisamente, la mujer usuaria de crack es aún más poderosa en su resistencia. Así, vivirían en el umbral entre la dependencia (ser químicamente dependiente de la droga), el confinamiento (en relación a su propio cuerpo y a la sociedad) y la resistencia (formando una contra-conducta a la norma molar). A partir de un análisis del discurso con revisión documental y bibliográfica, se analizan estas existencias, en busca del devenir-nóia que emerge de las usuarias.

The crack users, commonly known as "Nóias", circulate at an itinerant place in the center of São Paulo/Brazil, called "Cracolândia". Rejected by their families, and misunderstood by the State and social workers, the Nóias are excluded from the non-drugged society, which considers them as dirty and abnormal. Contposed to this ideal that is defined as "molar pattern" by Deleuze and Guattari, we propose that the naive is constituted as a resistant becoming, and, more precisely, the crack user woman is even more potent in her resistance. Therefore, they would live on the threshold between addiction (being chemically dependent on the drug), confinement (in relation to their own bodies and society), and resistance (forming a counter-conduct to the molar pattern). From a discourse analysis with documentary and bibliographic review, we analyze these existences, in search of the becoming-nóia that emerges from the users.

Índice
Texto completo

Introdução

Note de bas de page 1 :

O termo será explicado a seguir.

O crack – cocaína solidificada em cristais – sempre é representado como uma droga que causa dependência química, tanto no sentido emocional quanto físico. Já a Cracolândia, território itinerário no centro de São Paulo/Brasil que recebe o fluxo dos usuários de crack, é tido como um local sujo e anormal, onde estão presentes os seres mais perdidos da humanidade. E, finalmente, os “Nóias” (como são designados os usuários), são excluídos do meio social, econômico e político da normalidade posta. No entanto, se observado a partir da reflexão de Deleuze e Guattari com a filosofia da diferença, o Nóia poderia romper os paradigmas do “padrão molar”1, criando uma forma de resistência a essa normalidade? Para além disso, as mulheres que vivem ou viveram na Cracolândia, resistiram e resistem ao sistema patriarcal que confina as suas existências femininas, a partir da utilização da droga e da recusa dos segmentos sociais de uma vida “limpa”?

A presente pesquisa, portanto, pretende analisar o contexto das mulheres que estão ou estiveram na Cracolândia paulistana e o momento em que se tornarem usuárias de crack (portanto, no “devir-Nóia”). Assim, tem-se a hipótese de que as mulheres da Cracolândia vivem no limiar da fronteira entre dependência, confinamento e resistência. Na dependência, estão presas a droga. Estando presas, estão confinadas aos seus próprios corpos, sendo reféns da química e do desejo pela substância. Além do confinamento químico, enfrentam um confinamento social, à margem da sociedade e esquecidas pelo poder público, pela própria família e pelos demais habitantes da cidade de São Paulo. Contudo, resistem ao sistema de normalidade que as cercava antes de serem usuárias, e que as cercam enquanto as são.

Para compor esta análise, parte-se do pressuposto que as usuárias de crack rompem o paradigma moderno do padrão molar descrito por Deleuze e Guattari. Nesse padrão, a sociedade segue a normalidade do homem, branco, heterossexual, ocidental, adulto e racional. Como os próprios dizem, “O homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário . . . Maioria supõe um estado de dominação” (Deleuze & Guattari, 1997: 76). Rompendo esse padrão, as usuárias tornam-se resistentes à norma, contrárias a toda produção do capital branco, ocidental e masculino que dita as sociedades contemporâneas. Nesse sentido, a potência de fora-conduta das usuárias, descrita como “devir-nóia”, é uma resistência pulsante que deve ser estudada pelos cientistas das Ciências Humanas e Sociais.

Além desse fato importante de estudar as resistências das usuárias frente à sociedade atual, o presente artigo se justifica como um olhar diferente sobre a vulnerabilidade dessas mulheres. Propõem-se que as usuárias sejam vistas como forças necessárias para repensarmos o nosso próprio convívio e como lidamos com a “normalidade”. Assim, cada usuária, como também cada corpo que passa pela Cracolândia – sendo homem ou mulher – é essencial no mundo, e não descartável ou anormal, como a concepção do padrão molar prega.

A análise está dividida em três partes. Na primeira, apresentamos o método, focado em uma análise do discurso foucaultiana, mesclando-se com a filosofia deleuze-guattariana. A segunda expõe a realidade da Cracolândia, território itinerante da cidade de São Paulo, que aloca os usuários de crack. Por fim, trabalhamos com o “devir-mulher” e o “devir-nóia”, analisando os limiares em que as usuárias se encontram, entre dependência, confinamento e resistência.

Método

Note de bas de page 2 :

Já foi dito que os devires são minoritários. Isto porque a maioria é composta pelo padrão molar. Tanto é que os devires estão à margem da sociedade. No entanto, esta “minoria” não é uma questão “quantificável”, e sim expressa pelo o que é considerado correto e de boa-conduta. Portanto, os devires são colocados pela sociedade molar como uma “minoria”, e consequentemente estão fora – justamente por estarem na borda, no limiar, e não dentro do padrão – de todos os “direitos” ou concepções morais e éticas que sejam equalitárias e positivas.

Antes de descrevermos o método aplicado neste escrito, cabe dizer que não iremos impor uma verdade sobre a vida das usuárias de crack. Quando é dito que buscamos os limiares onde elas se encontram – entre a dependência, o confinamento e a resistência – não é o objetivo compor uma ordem lógica de seus movimentos, distinguindo-as do padrão molar a ponto de formar uma contraconduta que seja exemplar. Caso o fizéssemos, estaríamos reproduzindo o caráter científico de repressão dos devires-minoritários2, os quais são contrários a quaisquer estruturas de estudos rígidas e inflexíveis. Como dizem Deleuze e Guattari:

ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer de antemão se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não a tal outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão uma multiplicidade consistente ou de co-funcionamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer por onde passará a linha de fuga … Sabemos demais dos perigos da linha de fuga, e suas ambigüidades. Os riscos estão sempre presentes, e a chance de se safar deles é sempre possível: é em cada caso que se dirá se a linha é consistente, isto é, se os heterogêneos funcionam efetivamente numa multiplicidade de simbiose, se as multiplicidades transformam-se efetivamente em devires de passagem (1997: 29).

Portanto, este é um estudo preliminar e fronteiriço, assim como se encontram as usuárias ao se constituírem como bordas flexíveis diferentes do padrão molar, presentes na fronteira da própria lógica. Estamos no limiar da pesquisa, e compomos o presente trabalho como o começo de um novo olhar sobre as usuárias de crack e sobre o devir-nóia. E antes que qualquer mente logicamente conservadora se manifeste, se faz igualmente necessário dizer que não se trata de incentivar ou desincentivar o consumo de drogas, potencializando ou diminuindo seus benefícios ou experiências. Apenas escrevemos sobre suas usuárias, na esperança de que elas sejam ouvidas e entendidas.

Tendo elucidado esses pontos, passemos à compreensão do método. Esta é uma pesquisa quanti-qualitativa de caráter totalmente exploratório. Isto é, utilizando elementos qualitativos (como documentos, livros, jornais, relatórios) e quantitativos (análise de gráficos e tabelas), propõe-se um problema, retirando dele uma hipótese. Assim, apresentam-se os objetivos, destrinchando-os em outras argumentações, a fim de que a hipótese seja provada ou que, ao menos, faça sentido. Nossos dados serão compreendidos a partir de uma análise do discurso com base foucaultiana, utilizando, por vezes, a influência de Deleuze e Guattari.

Note de bas de page 3 :

Os relatos utilizados estão disponíveis em etnografias consagradas de autores brasileiros que estudam a Cracolândia. Gostaríamos de fazer uma etnografia sobre isto, mas as condições epidemiológicas atuais, impostas pela pandemia da COVID-19, impossibilitam entrevistar as usuárias.

Tais discursos não se compõe apenas de um amontoado de textos. Aliás, o discurso nunca foi somente texto. Foucault (2008) diz que uma análise pode conter diferentes técnicas, métodos e meios, mas o que compõe o cerne da formação discursiva é como os conceitos se relacionam uns aos outros. Portanto, o relato dito ou escrito das usuárias é essencial para a pesquisa3, mas não é o único elemento que servirá para a argumentação de seus limiares. Atrelado a ele, encontra-se nossa análise bibliográfica e documental desta realidade que perpassa, não apenas com o crack, mas também com a percepção sobre família e Estado.

Nesse sentido, nossa análise pode ser compreendida como atemporal em relação à condição das usuárias, caso a hipótese seja comprovada. Isto é, apesar de trabalharmos com discursos que possuem uma data específica, com depoimentos no período entre as décadas de 2000 e 2010, talvez o estudo possa englobar o período desde a “formação” da Cracolândia até, caso seja possível no futuro, o seu fim. Destarte, apesar de ter um início, que seria a formação desse local, a pesquisa não tem um fim visualizável. Mais uma vez, reforçamos o limiar em que o artigo se encontra, desafiando até mesmo a concepção lógica do tempo.

Ainda vale explicar alguns conceitos básicos que serão utilizados ao longo do trabalho. Como foi dito, nos inspiramos em Deleuze e Guattari para compor o que seria o “devir-nóia”. Esse termo está acoplado ao “devir-minoritário” descrito pelos autores, principalmente no livro intitulado Mil Platôs, escrito em 1997.

No sistema filosófico deleuze-guattariano, os conceitos de rizoma, molar e molecular são essenciais para o entendimento do devir. O rizoma é um termo retirado da biologia e incorporado na filosofia, sendo definido por essa última área como a multiplicidade de pensamentos, filosofias, saberes, sem ter um princípio e um fim, e sim um núcleo em movimento, ou seja, o sistema filosófico rizomático é a multiplicidade sem limites do pensar, é a movimentação da filosofia epistemológica (Martins, 2017).

Diante dessa premissa, o conceito de molar originado da química é utilizado no Sistema Internacional de Unidade como uma unidade de medida, para calcular a massa molar de um elemento. Assim, o molar é a unidade dada pela razão de átomos e moléculas dos elementos químicos. Na filosofia, o molar é o processo de unificar aquilo que é múltiplo, singularizando os diversos, como uma forma de padronização dentro da epistemologia dos autores (Martins, 2017).

Esse padrão molar é composto por representações bipolares estáticas de um contexto. Sendo estáticas, são duras e inflexíveis, e repetem-se a fim de manter sempre o mesmo comportamento, para que ele não seja quebrado na lógica posta. O padrão molar é, portanto, a família, o Estado, a profissão, a sexualidade, entre outras estruturas. Criado e reproduzido desde que os seres anseiam pela repetição (desde que se constitui como sociedade por filiação (Deleuze & Guatarri, 1997)), tal padrão foi ainda mais favorecido pela estrutura capitalista, que fomenta a repetição do comportamento do homem branco, heterossexual, ocidental, adulto, racional e habitante de cidades.

Já o conceito molecular, retirado agora do campo das ciências naturais, é o pressuposto químico de moléculas, portanto um aglomerado de átomos que se mantêm unido em uma substância. Deleuze e Guattari levam esse conceito químico para a filosofia, como sendo a multiplicidade em movimento, a multiplicidade como substantivo e não predicado. Como aponta Martins (2017: 39), “O molecular na filosofia deleuze-guattariana aparece no sentido de mostrar a multiplicidade que vai de encontro à molaridade/unidade”. Com isso, conclui-se que não existe padrão molar sem molecularidade e vice-versa.

Devir é tornar-se. Muitos filósofos debateram e escreveram variações desse conceito em suas obras. Mas aqui utilizaremos apenas as reflexões de Deleuze e Guattari. Sendo assim, os devires podem ser definidos como todo movimento que é contrário ao padrão molar. Destarte, os devires não são representações ou mimeses desse padrão:

Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" (Deleuze & Guattari, 1997: 16).

Consequentemente, os devires não são molares, e sim moleculares. Ao contrário do padrão molar, todos os devires são flexíveis e estão nas “bordas” do padrão, mutando-se e movendo-se constantemente. Compõem-se como fluxos fronteiriços não bipolares, que desafiam as regras e condutas do padrão molar, bordejando outras percepções através de seus movimentos. Com isso, os devires são visualizados como estranhos do ponto de vista molar. Afinal, não são “repetíveis” ou “imitáveis” como até então era posto. Os devires são, em nossa sociedade, múltiplos: existe o devir-mulher, o devir-negro, o devir-homossexual, o devir-criança, o devir-migrante, e, como propomos, o devir-nóia. Todos eles desafiam, de algum modo, as generalizações do padrão molar, que são tradicionais e conservadoras, bipolares e estruturais.

Além de compreender os conceitos de molaridade, molecularidade e devir, é preciso explicar o que é anormal, anômalo e afeto. Primeiramente, o padrão molar tem a tendência de designar todo devir como anormal. Contudo, os devires não são anormais. Isso porque não existe “normalidade” certa, que deveria ser seguida por todos. Viver não se trata disso. Propor que há uma normalidade na humanidade é oprimir e restringir a potência de todos os devires que não seguem o padrão molar. E se não existe normalidade, também não existe a-normalidade. Se os devires não são anormais, mas ainda assim constituem-se como diferentes da molaridade, o que eles são? Anômalos. Todos os devires são anômalos:

Pôde-se observar que a palavra "anômalo", adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origem muito diferente de "anormal": a-normal, adjetivo latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou o que contradiz a regra, enquanto que "a-nomalia", substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização. O anormal só pode definir-se em função das características, específicas ou genéricas; mas anômalo é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade (Deleuze & Guattari, 1997: 21).

Desiguais, os devires anômalos são um “fenômeno”:

O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são estrangeiras. Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que ela comporta em "intensão". Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a multiplicidade mudaria de natureza (Deleuze & Guattari, 1997: 22).

É chegada a hora de se definir os afetos, traduzido como afectos pela edição brasileira de Mil Platôs. Este é um conceito utilizado na filosofia de Espinosa, Deleuze e Guattari, como também de seus contemporâneos. Eles dizem que os seres humanos são afetivos. Isto é, se afetam (do verbo afetar), movendo “a alma” de modo positivo ou negativo. Então, afeto é tudo que um corpo pode causar a outro. Afetos de alegria aumentam a potência de agir e afetos de tristeza diminuem a potência de existir. Compreendê-los é importante para enxergar o Outro e não limitar essas potências. A grosso modo, todos os afetos são devires, pois os devires são movimentos que passam pela borda, e essa “afetividade” os intensifica ou os diminui.

No devir-nóia, os afetos estão presentes e não partem apenas dos usuários de crack. Todas as instituições e sujeitos que tratam da “problemática” dessa droga movimentam o devir, e consequentemente afetam os corpos que fazem parte desse universo.

Enfim, o método aqui aplicado pretende emergir a fala das usuárias, o contexto do Brasil, e o trabalho das instituições e seus autores, buscando o devir-nóia da mulher dependente química do crack. Os conceitos apresentados ajudarão a compreender os movimentos que elas fazem na borda, bem como o que as afeta e como elas mesmas provocam afetos. Passemos então à apresentação da Cracolândia, inserindo a filosofia de Deleuze e Guattari quando for necessário.

Uma breve história sobre a Cracolândia

Uma das questões sociais mais sensíveis da sociedade são os impactos das Cracolândias nos centros urbanos do Brasil. Dentre essas Cracolândias, a maior e mais famosa é a região central de São Paulo, um local com grande fluxo de usuários de crack de todo o país, detendo maior atenção pela ação do Estado e da sociedade civil (Frúgoli & Cavalcanti, 2013).

A Cracolândia é um território itinerante em que diferentes usuários de drogas se deslocam de suas origens para morar e consumir as substâncias em um local específico, afetando outras sociabilidades diferentes, como os moradores, trabalhadores e visitantes em torno desse espaço. Território itinerante entende-se como um local em que os usuários não se fixam permanente para tal consumo (Rui, 2012; Frúgoli & Cavalcanti, 2013), isso significa que todo tipo de relação social ou comercial entre os indivíduos em torno do crack pode ser estabelecido em um endereço diferente, por conta de diversos fatores (Rui, 2012). Assim, os corpos afetam-se movidos pelo objetivo de consumir a droga.

O crack é uma droga psicoativa derivada da pasta de cocaína, encontrada nas folhas de coca na região da floresta Amazônica. Essa substância é altamente viciante e pode prejudicar a saúde quando consumida excessivamente, ocasionando problemas físicos e mentais, além da forte dependência que impede o indivíduo a estar sóbrio e ter uma vida saudável. Cabe dizer que o termo “Cracolândia” não foi criado por uma norma jurídica ou política, sendo, na verdade, fruto da nomeação de discursos midiáticos que enraizaram no senso comum um protótipo de “Terra do Crack”, apelidando, portanto, aquele território como lugar público para utilização de drogas (Rui, 2012).

Note de bas de page 4 :

Já no âmbito externo, o auge dos grandes cartéis internacionais de droga na América Latina, foi o responsável por exportar as mais variadas drogas para os maiores mercados consumidores do mundo, tendo como destaque principal a cocaína (Manso & Dias, 2018).

Os problemas do consumo de crack no Brasil foram registrados no final da década de 1980 e início dos anos 1990. No âmbito interno4, surgiram algumas explicações para o aumento do uso dessa droga, dentre elas, os efeitos dessa substância, a epidemia de AIDS e a mudança na forma de usá-la. Vale destacar que o usuário de crack e o próprio crack são particularidades brasileiras, sendo que o consumo da droga se diferencia em outros países e com sujeitos de outras nacionalidades. Essa realidade é fortalecida pelos índices periféricos presentes no país.

Segundo as pesquisas de Rui (2012, 2014), os efeitos e sensações causados pelas mais variadas drogas potencializam qual é a melhor, justificando os motivos do consumo do crack, como relatado pela pesquisadora:

Em campo, ouvi de um ex-usuário de drogas injetáveis outra explicação: para ele, a razão de sua parada residia no fato de que a quantidade de cocaína estava muito ruim, em suas palavras "não dava mais barato''. Eu injetava e em vez de ter uma viagem boa, exotérica, ficava com o corpo todo dolorido (Rui, 2012: 63-64).

Além disso, a epidemia de AIDS foi uma grande preocupação para o governo e a população nesse período, haja vista que uma das formas de transmissão se dá pelo compartilhamento de objetos pessoais. Dessa maneira, os usuários de drogas injetáveis, com receio de se contaminar com essa nova doença, evitaram a utilização de seringas, migrando para outras técnicas de consumo, como a aspiração nas narinas ou fumar pelo cachimbo (Rui, 2012). 

Note de bas de page 5 :

Como mostrado por Biondi (2011), o crime organizado representado pelo Primeiro Comando da Capital proibiu a utilização do crack em seu domínio, isto é, nas periferias e cadeias, expulsando os usuários de seus bairros para fixar na região da Cracolândia.

De início, na cidade de São Paulo, intensificou-se nos primeiros anos do século XXI a utilização do crack e o surgimento da Cracolândia no centro da metrópole. A chegada dessa droga ocorreu primeiro nas periferias, em que os usuários não eram aceitos pelos seus familiares, moradores, movimentos sociais e membros do crime organizado5. Aqui, já se percebe que, assim que o usuário passa pelo devir-nóia, é excluído da sociedade molar que limita sua potência de existir por meio dos afetos “tristes”.

Note de bas de page 6 :

A pretensão do projeto da prefeitura Nova luz, era a revitalização do do bairro da luz. Contudo, esse projeto não foi adiante, estagnado a região a permanecer com diferentes problemas (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017).

Note de bas de page 7 :

O governo estadual instituiu o “Projeto Recomeço” para tratar o usuário a partir da internação compulsória, além de oportunidades e capacitação profissional para essas pessoas

Note de bas de page 8 :

Sob nova gestão, a prefeitura criou o projeto “De braços abertos”, diferentemente do anterior, ele buscou novamente inserir os usuários na sociedade com políticas de redução de danos e oferecimento de moradia e trabalho, o que levou muitos elogios pelas políticas públicas instituídas nesse projeto.

Note de bas de page 9 :

Com a mudança da prefeitura novamente, “foi se instaurada o projeto “Redenção”, com o propósito de unir todos os planos anteriores em um novo (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017).

Com o crescimento da Cracolândia, houve o aumento de roubos, furtos, prostituição, tráfico, entre outras ações que impactavam diretamente a convivência dos moradores e trabalhadores da região central de São Paulo, levando os governos federal, estadual e municipal a proporem diferentes projetos para enfrentar e solucionar os problemas desse local. As mais notáveis foram os projetos “Nova Luz” em 20056, o projeto “Recomeço” em 20137, o programa “De Braços Abertos” no ano de 20138 e o projeto “Redenção” em 20179. Esses projetos foram substituídos a cada nova gestão da prefeitura paulistana, mudando a forma de agir e o método de atuação, e priorizando políticas públicas ou força letal da polícia. Um exemplo de violência policial foi em 2012, quando ocorreu a “operação sufoco”, com o objetivo de acabar com a Cracolândia a força, com casos de agressões e confrontos entre os usuários e os policiais, gerando críticas à forma desastrosa dessa ação (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017).

Note de bas de page 10 :

Além desses projetos de governos, há medidas de outros setores, para auxiliar com comidas, vestimentas, ajuda com tratamentos de saúde, assistência social e conscientização do uso das drogas, seja para evitar o uso ou indicar meios que sejam menos prejudiciais à saúde dos usuários (Rui, 2012).

Contudo, essas ações do Estado e da sociedade civil10 não conseguiram extinguir o território da Cracolândia, e apenas elevaram as tensões entre os usuários e a sociedade. Isso porque o devir-nóia alterna entre as bordas e causa estranheza à multiplicidade do padrão molar. Os projetos relatados, bem como as instituições que os coordenam, não conseguem lidar com os movimentos desse devir. Em uma comparação com o devir-animal, quando Deleuze e Guattari analisam o livro Moby Dick, é possível perceber essa alternância de movimento não compreendido pelo padrão molar:

Moby Dick não é nem um indivíduo nem um gênero, é a borda, é preciso que eu bata nela para atingir toda a matilha, para atingir toda a matilha e passar através. Os elementos da matilha são tão somente "manequins" imaginários, as características da matilha são apenas entidades simbólicas, só conta a borda — o anômalo . . . De todo modo, haverá bordas de matilha, e posição anômala, cada vez que, num espaço, um animal encontrar-se na linha ou em vias de traçar a linha em relação à qual todos os outros membros da matilha ficam numa metade, esquerda ou direita: posição periférica, que faz com que não se saiba mais se o anômalo ainda está no bando, já fora do bando, ou na fronteira móvel do bando (Deleuze & Guattari, 1997: 23)

Portanto, os movimentos das usuárias não são lineares, e, por isso, a lógica dos programas de reabilitação não funciona. Pois, tais como os rizomas descritos na filosofia deleuzo-guattariana (que são a potência das interconexões entre os corpos, através de seus movimentos e devires), as usuárias se interconectam com outras realidades alternativas, contrárias e não próximas do padrão molar. Inclusive, os autores comentam sobre essa movimentação das drogas no geral: “Se a experimentação de droga marcou todo mundo, até os não-drogados [grifo nosso], é por ter mudado as coordenadas perceptivas do espaço-tempo . . .” (Deleuze & Guattari, grifo nosso, 1997: 27).

Em constante fuga da padronização dos programas de reabilitação, as usuárias bordejam multiplicidades que não conseguem ser quebradas pelos assistentes sociais e agentes políticos, ou demais atores que lidam com a problemática. Cada vez mais distantes do padrão, elas correm através de diferentes linhas de fuga, tornando verdadeiramente significativo a característica de “itinerância” da Cracolândia, pois elas se tornaram, por si só, naturalmente desterritorializadas. Em vão, o Estado busca “convertê-las” na ordem vigente por meio desses programas pois não entende a mutabilidade que possuem, e como elas, agora, enxergam o mundo. “O erro, do qual é preciso preservar-se, é o de acreditar numa espécie de ordem lógica nessa enfiada, nessas passagens ou transformações” (Deleuze & Guattari, 1997:28), justamente porque não existe um movimento lógico nos devires, independentemente de sua natureza.

O devir-mulher e o devir-nóia: a mulher dentro do universo do crack

O indivíduo que se insere nesse universo do crack tem em seu histórico problemas familiares e sociais, com episódios de violência, opressão e miséria, o que o leva a experimentar e se viciar nessa substância (Santos et al., 2020). A aproximação é feita por um conhecido, apresentando o crack como uma forma de fugir da realidade dada, levando a sensações e sociabilidades diferentes (Medeiros et al., 2015) do padrão molar.

Note de bas de page 11 :

Além disso há muitos traficantes, integrantes de facções criminosas, moradores de rua, profissionais do sexo, usuários de outras drogas e/ou bebidas, policiais, guardas civis, seguranças privados, assistentes sociais, comerciantes, moradores, voluntários, religiosos, jornalistas.

Um dos maiores efeitos que a Cracolândia reproduz na sociedade é a criação dos sujeitos usuários de crack. Não há um padrão nos consumidores da droga, isto é, são uma multiplicidade de pessoas, culturas, identidades e personalidades diferentes, sendo homens, mulheres, crianças, adultos, idosos, héteros, LGBTI, negros e brancos (Adorno et al., 2013; Medeiros et al., 2015). Não existe, portanto, um sujeito singular que circula nesse espaço, e sim diversos indivíduos11 que são afetados pela sociabilidade, mesmo que não estejam agindo diretamente. Contudo, a mulher sofre mais com os efeitos do crack, haja vista todas as problemáticas e violência por ser mulher em um espaço marginalizado pela sociedade e pelo Estado, dentro do padrão molar. 

Esse padrão, como já dito, é composto pela figura dos homens. É claro que homens podem ser devires. Tanto que admitimos um devir-nóia dos usuários homens. No entanto, Deleuze e Guattari afirmam que todo devir perpassa, primeiramente, o devir-mulher:

. . . que chamamos de entidade molar aqui, por exemplo, é a mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao homem, enquanto determinada por sua forma, provida de órgãos e de funções, e marcada como sujeito. Ora, devir-mulher não é imitar essa entidade, nem mesmo transformar-se nela [grifo nosso]. Não se trata de negligenciar, no entanto, a importância da imitação, ou de momentos de imitação, em alguns homossexuais masculinos; menos ainda a prodigiosa tentativa de transformação real em alguns travestis. Queremos apenas dizer que esses aspectos inseparáveis do devir-mulher devem primeiro ser compreendidos em função de outra coisa: nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular . . . Ora, se todos os devires já são moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer também que todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires [grifo nosso] (1997: 59 e 61).

Então, quando propomos um devir-nóia, e quando falamos de mulheres na Cracolândia, queremos dizer que, antes delas serem usuárias, já bordejavam seu devir. Afinal, considerando que 78,56% das usuárias de crack no Brasil se declaram como não brancas, 85.54% não completaram o ensino médio, 75,77% já fizeram alguma atividade ilícita para obter a droga, 35,43% têm uma história prévia na prisão, 46,63% sofreram violência sexual (Jalil et al, 2014), as usuárias já estavam se movimentando, gerando afetos de resistência contra um padrão molar que as oprimia. E quando, finalmente, se tornam Nóias, ao consumirem a droga, bordejaram e bordejam mais multiplicidades de resistência, pois seu devir anterior se soma ao atual, projetando movimentos constantes que nunca serão entendidos por uma sociedade molar.

Para compreender ainda mais o “ser” Nóia, é preciso dizer que o vício da droga produz mudanças no corpo e no modo de agir dessas pessoas, contribuindo para a criação de um novo sujeito que foi apelidado pejorativamente de “Nóia”, “Cracudo”, “Zumbi” (Frúgoli & Cavalcanti, 2013), como forma de associar aquele corpo a uma coisa anormal (Soares, 2020) dentro do padrão molar.

O Nóia é o indivíduo que teve seu corpo e comportamento modificado por causa do uso excessivo do crack, tendo apenas o objetivo de buscar recursos para comprar a droga e usá-la. O corpo desse sujeito se modifica constantemente, não possuindo higiene e uma alimentação saudável, além de apresentar um comportamento violento ao realizar qualquer tipo de ação para buscar renda e comprar a sua droga, seja ela legal ou ilegal. Como a perda dos vínculos da sociabilidade “… que proporcionam as condições de limpeza, asseio e saúde, bem como da consequente exposição às intempéries do clima, à aspereza da rua, aos conflitos corporais, ao uso crescente de drogas e, por fim, à adesão à rua‘(Rui, 2012: 269).

O corpo Nóia é renegado, odiado e envergonhado pelos próprios usuários, por conta de suas características físicas e comportamentos específicos, constituindo uma autopunição ou desprezo pelo próprio corpo (Rui, 2012). Além do fato da exclusão e preconceito de outros usuários ou não usuários diante desse corpo, deixando-o isolado e sozinho (Medeiros et al., 2015; Rui, 2012). Mais adiante, será visto que apesar de se constituir como um devir, os efeitos do crack desfazem a linha de fuga que são resistentes ao padrão molar, fazendo com que o sujeito se volte para si mesmo, de forma negativa, pois o corpo confina a si próprio com os efeitos da droga. Os relatos apresentados demonstram o constrangimento de ter um corpo Nóia, e a exaltação de não ser Nóia.

O mesmo se passou quando Adriana soube que a mãe tentara entrar em contato com a assistente social de uma instituição para mediar o encontro entre as duas. Ela se recusava terminantemente a ver a mãe, dizendo “olha a minha situação, imagina se vou deixar ela me ver assim, parecendo uma nóia...”. Ela me falou ter se recusado a encontrar com o filho “nessa situação”. Disse à mãe que os procuraria quando não estivesse tão nóia (Rui, 2012:249).
. . .
um homem que depois veio se autoapresentar como Alemão. Já chegou dizendo que fumava crack “desde que o crack existe”, mas que ficava de boa e, apontando para alguns que passavam, comentou não ser como eles, não ter essa paranoia de sair andando. Vestia camiseta, shorts e tênis, que ganhavam o adorno de muitos anéis, pulseiras, colares e um boné. Para afirmar sua diferença em relação aos demais, nos mostrou seu cachimbo, feito de cobre, cujo bocal possuía uma leve peneira, “para filtrar” (Rui, 2012:186).

Ambas as falas são de consumidores de crack, mas em níveis e condições distintas. A primeira citação mostra dois relatos de pudor e desonra das usuárias para um possível encontro com seus familiares. A segunda, em uma situação antagônica, mostra um usuário com orgulho de “não ser como eles”, constituindo uma vitória em não ser um Nóia. 

A mulher Nóia, assim, sofre mais pela agressividade das pessoas com o corpo Nóia, por causa da sujeira, perda da vaidade, feridas, subnutrição, entre outros fatores que fazem-na ser ainda mais rejeitada pelo padrão molar. Somado a isso, tem-se que os efeitos dessa droga são mais fortes, em razão da dificuldade de eliminá-la no organismo (Santos et al., 2020). Ademais, o sofrimento que ela passou pelo padrão molar produz diferentes traumas, o que se acentua ainda quando está na Nóia.

Portanto, o corpo Nóia se tornou uma negação, um adjetivo ruim e uma vergonha, diferenciado daqueles que usam drogas e conseguem se inserir na sociedade. Com isso, nem todo usuário de crack se “transforma” em um corpo Nóia, mas quando seu consumo de drogas está em um nível bastante alto, afetando sua alimentação e higiene, ocorrem as mudanças no corpo e em suas ações, tornando-se Nóia.

Essas constantes movimentações, quando não mais inteiramente controladas pelas usuárias, produzem uma linha mortal ou abolicional, como discute Deleuze em um texto sobre drogas:

O drogado fabrica suas linhas de fuga ativas. Essas linhas, porém, enrolam-se, põem-se a rodopiar em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou indivíduo, como um caramujo. Mais afundado que chapado. Guattari falou disso. As micropercepções são recobertas de antemão [grifo nosso], segundo a droga considerada, por alucinações, delírios, falsas percepções, fantasias, acessos paranóicos (Deleuze, 2016: 2).

Na obra Mil Platôs, Deleuze e Guattari também escrevem sobre a linha de fuga molecular que se corrói em uma linha mortal ou abolicional com o consumo de drogas:

. . . a linha causai da droga, sua linha de fuga, não pára de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante. Mesmo que em sua forma flexível ela possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de modo a determinar devires-animais, devires-moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de limiares que se contenta em imitar um plano de consistência em vez de traçá-lo num limiar absoluto (Deleuze & Guattari, 1997: 69-70).

Portanto, esse contexto se confunde entre o perceptível e o imperceptível do movimento do devir: “Todo um trabalho rizomático da percepção, o momento em que desejo e percepção se confundem” (Ibid.: 67). Apesar de que Deleuze e Guattari estivessem se direcionando a usuários de heroína (uma droga mais cara e, consequentemente, utilizada por sujeitos de classe média e alta), essas reflexões fazem sentido para a realidade brasileira de consumo de crack na Cracolândia paulistana. Mesmo que os Nóias bordegem devires e sejam marginalizados, como já expomos, os efeitos do crack confundem a percepção do real e do irreal, fazendo com que o usuário esteja preso à própria desordem do corpo, em um expresso confinamento de si mesmo.

Assim, quando está na Nóia, isto é, sob efeito da droga (Rui, 2012), o usuário está confinado ao seu próprio corpo, como também está após a utilização, pois, sendo um(a) viciado(a), é dependente daquele consumo. Importante dizer que, esse confinamento que tratamos, neste momento, não é o mesmo expresso por Foucault em Vigiar e Punir (1987) com as sociedades disciplinares, nos quais os corpos não cessam de passar de um espaço confinado a outro, seja na família, escola, fábrica, hospital e até a prisão.

Diante de todo contexto apresentado, o confinamento per se dos usuários de crack é um dos pilares da relação usuário e droga. Segundo as considerações de Gomes e Adorno (2011) em suas pesquisas nos catálogos da Associação Americana de Psicologia (APA), a dependência a partir de um saber psicológico, retratada pelo envolvimento dos usuários com a substância do crack, é categorizada como:

Continuar o uso apesar de significativos problemas ligados a este; aumento da tolerância, sintomas de abstinência e um comportamento compulsivo de consumo. Por tolerância entende-se a necessidade do aumento da quantidade usada para se obter o efeito desejado (Gomes & Adorno, 2011:575).

Dessa forma, a tolerância limitada, a abstinência e o comportamento compulsivo de consumo, como os autores citam, produzem na sociabilidade do Nóia um desejo incontrolável que remete a ações e formas de agir diferentes do padrão molar.

Com isso, as dificuldades de reduzir o consumo de crack gera frustrações, agressividade, isolamento e práticas de sobrevivência no limite linear entre o legal e o ilegal (Gomes & Adorno, 2011; Rui, 2012). Aqui, mais uma vez, os usuários estão bordejando resistências, em movimentos constantes que os colocam e os deslocam da legalidade. O reforço dessas frustrações ocorre com as ações violentas do Estado por meio de políticas públicas mais intervencionistas e ostensivas das forças policiais (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017) em relação à Cracolândia e, consequentemente, aos próprios usuários.

Além disso, outros fatores estimulam a estigmatização contra esses corpos apelidados como “Nóias, Cracudos e/ou Zumbis”, como: a falta de moradia e alimentação; a sujeira em seus corpos e roupas; os problemas de saúde devido aos fatores climáticos ou infecções sexualmente transmissíveis (ISTs); as ações ilegais para conseguir o crack; e o momento de êxtase causado pela droga (Frúgoli & Cavalcanti, 2013; Gomes & Adorno, 2011; Rui, 2012). A definição utilizada pelos próprios usuários nessa condição:

O "Nóia", no entanto, segundo eles, é aquele que fuma descontroladamente, a qualquer custo, fazendo qualquer coisa para conseguir a droga, mas nem todos os usuários dali estão nesta condição (Gomes & Adorno, 2011:580).

Portanto, a dependência e o confinamento dos Nóias com o crack é mais consolidado, por ter componentes estruturais que são inseridos na vida dos indivíduos. Consequentemente, os problemas de saúde, psicológicos e sociais, são efeitos que reforçam o Nóia como um sujeito afetado pela repulsa ao padrão molar, confinado num complexo “refúgio” que modifica toda vida do usuário.

Nesse sentido, as usuárias buscam fugir de um padrão que as oprimia, mas acabam se tornando reféns de outro, ao confinarem seus corpos à droga. Mais à frente será visto o quanto essa realidade fortalece a vulnerabilidade das mulheres Nóias, e por enquanto basta dizer que, apesar dos movimentos de contraconduta serem extremamente significativos para a formação de uma resistência feminina, o crack destrói a potencialidade delas. Corroídas pela droga, as mulheres vagueiam pela Cracolândia sem a percepção total do que são e do que poderão se tornar. No entanto, os moradores dessa região têm uma opinião muito bem formada sobre o “problema” que os ronda, rastejando-se dia e noite em busca da droga:

As opiniões retratam os usuários como pessoas perigosas e creem que sua presença “atrapalha a prosperidade do bairro” (Folha de São Paulo, 16/04/15), a “segurança das pessoas” (ibidem, 16/05/14) e o “direito de ir e vir” (ibidem, 16/10/10). Os moradores sentem-se “desamparados” (ibidem, 03/01/14) e com menos direitos que os usuários que recebem alimentação e moradia gratuitamente do Estado, demonstrando a preocupação individual diante de problemas de ordem coletiva. Eles apontam que não querem a “miséria humana” sentada à sua calçada e sugerem que os “defensores de direitos humanos os levem para casa” (ibidem, 12/01/12). Creem que manter projetos e usuários no bairro irá “destruir a região” (ibidem, 15/04/15), pois são pessoas que “degradam a imagem do centro da cidade” (ibidem, 11 dezembro 2012), e reforçam que o hospital psiquiátrico seria uma opção de destino para estas pessoas. O hospital, nesse caso, não só tem a função de tratamento, como habitualmente é citado, mas principalmente de modelar e sujeitar as subjetividades ali “confinadas”. Estabelece relações de tratamento, vigilância, obediência e segregação, com a preocupação maior de manter a sociedade em segurança (Goffman, 2013); (Zanotto & Assis, 2017:782).

As autoras também apontam os motivos comerciais e de limpeza que são citados pelos comerciantes após operações na Cracolândia:

Quando ocorrem operações policiais e de limpeza dos locais de consumo da droga, comerciantes e moradores elogiam a conduta e “comemoram o aumento no movimento do comércio” e até da “qualidade do ar” (Folha de SP, 06/01/12), reforçando a ideologia da higiene, que já existe desde o século XIX e que perdura no Brasil desde a época dos cortiços, por meio do combate às “classes pobres” e “classes perigosas”, quando as autoridades se uniam à população para despejar os indesejáveis das cidades (Chalhoub, 1996); (Zanotto & Assis, 2017:782).

Além do confinamento de si próprias quando estão na nóia, as usuárias - como também os homens - sofrem um constante e repressivo confinamento social. Majoritariamente, o padrão molar chega ao consenso de que o poder público deve tomar uma atitude, propondo que os usuários sejam presos ou levados até um hospital psiquiátrico. Lá, serão expostos a tratamentos que diminuem os seus movimentos e, consequentemente, a potência de seus devires.

Como supracitado, a ação do poder público mediante ao padrão molar foi vista nos projetos da prefeitura paulistana para combater a Cracolândia, como o projeto Redenção em 2017. Esses exemplos têm a junção de medidas repressivas das forças policiais e o encaminhamento para instituições para o tratamento, causando mais marginalização e violência para os usuários, principalmente às mulheres:

Um caso envolvendo diretamente as mulheres aconteceu no final de setembro, quando algumas delas alegaram ter passado por “revista vexatória” por parte da Guarda Civil. A ação começou quando a GCM, enquanto supervisionava a limpeza dos arredores, desconfiou de comércio ilegal de drogas em barracas na área e passou a revistar os suspeitos em uma das tendas da prefeitura. Usuárias afirmaram que tiveram de ficar nuas e agachar para passar pela averiguação (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017:9).

É notável observar que as propostas de regulação do espaço público, a partir da problemática dos usuários de drogas no território da Cracolândia, podem ser entendidas nas perspectivas de Deleuze, Guattari e Foucault. Nesse sentido, o poder público não investe no confinamento em massa dos Nóias em prisões ou hospitais, mesmo com o pedido dos moradores. Isso porque, segundo Deleuze, o capitalismo:

manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas (Deleuze, 1992:224).

Já na perspectiva foucaultiana, as técnicas disciplinares regem os indivíduos diante o território da Cracolândia, organizando e disciplinando os corpos naquele espaço, com táticas específicas, que vão de encontro com os relatos de outros sujeitos contrário a existência dos usuários, como pode ser observado pelo autor:

É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (Foucault, 1987:169).

No entanto, ambos os autores admitiram que não estamos mais em sociedades disciplinares, e sim de controle, “que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” (Deleuze, 1992:216). Portanto, enquanto a sociedade pensa que o melhor é confinar os usuários - o que chamamos de “confinamento social” -, excluindo-os do meio urbano, as instituições optam por enquadrá-los em um controle contínuo, que se assemelha a uma cidade dividida no binarismo molar do lícito e do ilícito, tal como Guattari imaginou:

. . . uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado (...), o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal (Deleuze, 1992:224-225).

Destarte, o Estado, por meio de suas intervenções com a polícia, e o estigma, criado pela própria sociedade brasileira, se adaptam ao controle estabelecido na região da cracolândia, marginalizando ainda mais a resistência dos devires-nóias.

Contudo, mesmo com essas repressões diárias e repletos de estigmas que os oprimem (Goffman, 1998), os usuários continuam bordejando multiplicidades, principalmente entre eles próprios. Isto é, os Nóias têm uma relação de pertencimento e identidade entre eles mesmos, visto que não há um estranhamento, comparado aos não usuários que criticam e marginalizam esses sujeitos (Santos et al., 2020; Rui, 2012). Dessa forma, como observado na pesquisa da Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (São Paulo, 2020), os Nóias preferem frequentar a região da Cracolândia pela segurança do convívio entre eles. Porém, mesmo que haja segurança no local para o consumo da substância, ocorrem outros tipos de insegurança, com a violência constante, principalmente nas relações de homens e mulheres.

Note de bas de page 12 :

As instituições de pesquisa consultadas utilizam metodologias diferentes, visto que a Cracolândia sempre se transforma e muda seu território e sua sociabilidade.

Note de bas de page 13 :

A UNIAD contabilizou além de homens e mulheres, os trangêneros, com 7,5% na Cracolândia.

As usuárias mulheres ou “As Nóias” sofrem muito na Cracolândia, em razão de problemas como o preconceito, assédio, a violência física, simbólica, sexual, a exclusão e o abandono. Segundo os dados de pesquisa12, houve um aumento de usuárias no local. Em 2014, a Fundação Oswaldo cruz (FIOCRUZ) contabilizou que 21% dos consumidores são mulheres, já em 2017 o Programa Nacional das Nações Unidas (PNUD) realizou uma pesquisa e mostrou que as mulheres são 34% na Cracolândia paulistana ou o número de 642 usuárias (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017), e em 2019 a UNIAD demonstrou que 23,7%13 eram mulheres nesse espaço (São Paulo, 2020).

Note de bas de page 14 :

Entende-se situações extremas como pequenos furtos, prostituição e acordos com outros usuários.

Apesar de serem minoria entre os usuários, as mulheres são as mais afetadas pela violência, estando em espaços mais perigosos e em situações mais delicadas, já sofrendo com abandono de seus familiares, violência sexual e humilhação (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017; Rui, 2012). Para conseguirem as drogas, elas são submetidas a situações extremas14, deixando-as em uma situação ainda mais marginalizada.

O abandono é muito mais presente nas mulheres usuárias e principalmente naquelas consideradas como Nóias. Por ser um espaço mais masculinizado, o abandono familiar por parte dos companheiros, pais e filhos são muito mais sentidos nessas mulheres, pois a culpa e os problemas envolvendo o crack recai sobre elas, ficando muitas vezes sem o amparo de um familiar, e sendo socorridas por outros usuários da Cracolândia (Fertig et al., 2016; Medeiros et al., 2015).

As mulheres que engravidam na Cracolândia também passam por uma realidade árdua, com muitos obstáculos que as impedem de ter uma gestação saudável. Uma parcela das que engravidam são consequência da prostituição, pela venda dos serviços sexuais em troca da droga ou dinheiro. Nesses casos, a mulher não tem autonomia e controle da situação: “precisa lidar com a negociação do próprio corpo, o que quase nunca é simples. Com o valor de troca pelo sexo sendo muitas vezes imposto pelos clientes, ela fica sujeita a pagamentos irrisórios, sob risco de ser violentada caso contestem” (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017: 4). Portanto, como dizemos, mesmo enquanto devir-nóia, as mulheres não se livram da opressão anterior. Afinal, o machismo é estrutural, e fará de tudo para impedir a flexibilidade e multiplicidade de qualquer devir.

Essas questões de gênero se estabelecem nas instituições, como na pouca oferta de abrigos para os usuários dormirem à noite. Com exclusividade aos homens, a maioria dos abrigos não disponibilizam vagas para mulheres, como exemplificado pelas autoras, na época, existiam 6 centros de acolhimento no território da Cracolândia, com 1566 vagas, porém, apenas para homens (Oliveira, Paiva & Batistoti, 2017). Mais uma vez, o padrão molar sobressai na administração da Cracolândia, pois a vida das mulheres parece não ser considerada com o mesmo fervor se comparada aos usuários homens.

Note de bas de page 15 :

Destacamos exemplos desse tipo de violência em outras Cracolândia, como nos relatos: “ [...] estava grávida de sete meses, e um cara tentou me matar sufocada. (E6) Sofri violência uma vez. Fui e o cara me agarrou à força. Acho que ele estava muito chapadão, muito alucinado, me agarrou, e daí nós transamos. (E4). (Fertig, et al., 2016:312).

Com a sociabilidade do espaço da Cracolândia marcado pela predominância masculina e a subjugação e opressão mais acentuada na figura da mulher15, muitas delas adquirem um comportamento mais resistente, seja para confrontar rivalidades daquele local ou para incorporar as relações sociais entre os usuários homens e mulheres (Fertig et al., 2016; Rui, 2012). Como os usuários e os Nóias estão às margens da sociedade, sofrendo com o vício, opressão, repressão e falta de assistência, às mulheres se inserem em uma relação tênue, entre resistir naqueles espaços e se colocar de forma mais ativa contra as contradições, ou estar mais marginalizada e oprimida na relação de gênero entre os próprios consumidores (Fertig et al., 2016). Assim, podem afetar e receber afetos positivos, como também negativos, estando no limiar da própria resistência.

Diante disso, a mulher nessa condição é marginalizada de diferentes formas pela sociedade, seja pela situação de conviver e morar na Cracolândia, seja pelo uso de drogas e principalmente o crack, e, por fim, a opressão ao seu próprio corpo, a sua própria vida e ao seu próprio futuro, marcado por vários tipos de violência em contextos diversos.

Considerações finais

O presente texto constitui-se como uma análise inédita sobre as usuárias de crack da Cracolândia. Isto porque, a partir de um estudo discursivo, com base em pesquisa bibliográfica e documental, é buscado o devir-nóia que elas bordejam, tendo como influência a filosofia de Deleuze e Guattari. Ao longo do trabalho, buscou-se elucidar os limiares em que as usuárias se encontram, entre dependência, confinamento e resistência.

Dessa forma, as mulheres Nóias sofrem um confinamento social (visto que os habitantes da região exigem ações intervencionistas e violentas do poder público, em que as usuárias são levadas até prisões ou hospitais psiquiátricos). Por fim, mesmo com todos esses desafios, as mulheres resistem ao sistema que as oprimia anteriormente, e que as oprime enquanto estão na condição de Nóias.

Assim, através da inserção de trechos do livro Mil Platôs, foi possível compreender o devir-nóia, bem como o limiar da mulher nessa condição. Entretanto, a hipótese foi parcialmente comprovada, não estando completa pela falta de uma etnografia aplicada. Como foi dito no início, o trabalho constitui-se como fronteiriço, e não pretende ditar uma verdade sobre quaisquer que sejam os devires. Por isso, é fundamental que a pesquisa seja mais desenvolvida com uma etnografia-participante na Cracolândia.