Política de piedade na propaganda social sobre a violência doméstica contra a mulher Policits of pity in social advertising about domestica violence against women
A política de piedade é um termo empregado pelo sociólogo Luc Boltanski para se referir ao discurso que trata do sofrimento a distância e ao modo como ele é transmitido na mídia a fim de engajar o espectador para a causa que apresenta. Segundo Boltanski, as produções midiáticas podem ser direcionadas conforme o objetivo que almejam: se forem para incentivar a denúncia, deve-se provocar a indignação do espectador focando na ação do agressor, se forem para despertar o sentimento de cuidado e enternecimento, deve-se focar na ação do benfeitor que alivia o sofrimento da vítima. O intuito deste trabalho, então, é investigar essa política de piedade recorrendo a três propagandas sociais que tratam da violência doméstica contra a mulher, sendo uma do governo brasileiro, outra do governo português e outra do governo britânico. Enquanto as propagandas brasileira e portuguesa incentivam a ação da denúncia, a do governo britânico incentiva a ação de benfeitores. A metodologia de análise dessas propagandas advém do trabalho de Lilie Chouliaraki, que amplia as reflexões de Boltanski e desenvolve três critérios para avaliar a produção midiática sobre o sofrimento a distância, sendo eles: a multimodalidade, a relação espaço-tempo e agência. Com base nesses critérios, foi possível avaliar cada campanha estudada e seu potencial para engajar o espectador para as causas apresentadas.
La politique de la pitié est un terme employé par le sociologue Luc Boltanski pour désigner le discours qui traite de la souffrance à distance et de la manière dont elle est transmise dans les médias afin d'engager le spectateur dans la cause qu'elle présente. Selon Boltanski, les productions médiatiques peuvent être orientées selon les objectifs qu'elles visent ; pour encourager la dénonciation, elles doivent provoquer l'indignation du spectateur en se concentrant sur l'action de l’agresseur; pour éveiller des sentiments d´attention et de tendresse, elles doivent se concentrer sur l'action du bienfaiteur qui soulage la souffrance de la victime. L'objectif de ce travail est donc d'investiguer cette politique de pitié en recourant à trois publicités sociales traitant de la violence domestique contre les femmes, l'une émanant du gouvernement brésilien, l'autre du gouvernement portugais et une autre du gouvernement britannique. Tandis que les publicités brésilienne et portugais encouragent la dénonciation, celle du gouvernement britannique encourage l'action des bienfaiteurs. La méthodologie d'analyse de ces publicités se fonde sur le travail de Lilie Chouliaraki, qui élargit les réflexions de Boltanski et développe trois critères pour évaluer la production médiatique sur la souffrance à distance, à savoir: la multimodalité, la relation espace-temps, et l'agentivité. Sur la base de ces critères, il a été possible d'évaluer chaque campagne étudiée et son potentiel pour engager le spectateur dans les causes présentées.
La política de piedad es un término empleado por el sociólogo Luc Boltanski para referirse al discurso que trata sobre el sufrimiento a distancia y cómo se transmite en los medios de comunicación para involucrar al espectador en la causa que presenta. Según Boltanski, las producciones mediáticas pueden ser dirigidas según los objetivos que persiguen: si quieren fomentar la denuncia, deben provocar la indignación del espectador centrándose en la acción del agresor; si quieren despertar sentimientos de atención y ternura, deben centrarse en la acción del benefactor que alivia el sufrimiento de la víctima. El propósito de este trabajo, entonces, es investigar esta política de piedad recurriendo a tres anuncios sociales que tratan sobre la violencia doméstica contra la mujer, uno del gobierno brasileño, otro del gobierno portugués y otro del gobierno británico. Mientras las propagandas brasileña y portuguesa fomentan la denuncia, el del gobierno británico fomenta la acción de los benefactores. La metodología de análisis de estos anuncios proviene del trabajo de Lilie Chouliaraki, que amplía las reflexiones de Boltanski y desarrolla criterios para evaluar la producción mediática sobre el sufrimiento a distancia, a saber: la multimodalidad, la relación espacio-tiempo, y la agencia. A partir de estos criterios fue posible evaluar cada campaña estudiada y su potencial para involucrar al espectador en las causas presentadas.
Politics of pity is a concept employed by sociologist Luc Boltanski to refer to the discourse that deals with distant suffering and how it is conveyed in the media in order to engage the spectator for the cause it presents. According to Boltanski, media productions can be directed according to the objectives they aim for: if they are for encourage denunciation, they should provoke the spectator's indignation by focusing on the aggressor´s action, if they are to awaken the feeling of care and tenderness, they should focus on the action of the benefactor who alleviates the victim's suffering. Then, the aim of this work is to investigate this politics of pity through three social advertisements that deal with domestic violence against women, one from the Brazilian government, another from the Portuguese government, and another from the British government. While the Brazilian and Portuguese advertisements encourage denunciation, the British government's encourages the action of benefactors. The methodology for analyzing these advertisements comes from the work of Lilie Chouliaraki, who expands Boltanski's reflections and develops three criteria to evaluate media production on distant suffering, namely: multimodality, space-time relationship, and agency. Based on these criteria, it was possible to evaluate each campaign and its potential to engage the spectator for the causes presented.
Introdução
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível https://agenciafreela.com.br/consumo-de-tv-em-um-mundo-digital-importante/Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 88887.691393/2022-00.
Este artigo é resultado parcial do projeto Mídia, Violência e Alteridade1 que tem como um dos objetivos investigar as propagandas sociais que tematizam a violência doméstica contra a mulher. Neste estudo, foram selecionadas três propagandas produzidas em 2022 que recorrem a diferentes linguagens audiovisuais com objetivos distintos. A primeira foi produzida pelo governo brasileiro e intitula-se “Campanha de enfrentamento à violência contra a mulher” (Brasil, 2022); outra foi produzida pelo governo português, chamada apenas de “Violência Doméstica” (Portugal, 2022), e a última foi produzida pelo governo britânico, intitulada “Enough. Campaign to Tackle Violence Against Women & Girls” (UK Government, 2022).
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Neste artigo utilizamos a versão em inglês do livro. A versão francesa, La Souffrance à Distance: morale humanitaire, médias et politique foi lançada em 1993.
O instrumental teórico utilizado tem como principal referência o trabalho do sociólogo francês Luc Boltanski, autor de Distant Suffering: morality, media and politics (1999).2 Nele, o autor trata do tema da política de piedade, uma reflexão que envolve o sofrimento do outro exibida na mídia. As considerações de Boltanski são muito profícuas, especialmente suas proposições para o engajamento do espectador diante de propagandas de viés humanitário. O autor delineia uma fórmula considerando alguns aspectos que poderiam engajá-lo para a causa apresentada. Assim, para ele, o espectador tem um papel fundamental.
Nosso intuito neste artigo não é exaurir a obra de Boltanski, que possibilita inúmeros desdobramentos sobre o tema graças ao diálogo que realiza com diversas referências teóricas do campo das Humanidades. O nosso esforço é o de fazer recortes conceituais que façam sentido ao nosso objeto. Por se tratar de um autor pouco explorado nas pesquisas em Comunicação, apresentamos, a seguir, uma rápida contextualização a seu respeito.
1. Política de piedade
Ao longo de sua trajetória, Luc Boltanski voltou-se para temas relacionados à justiça e à moral tendo como perspectiva a capacidade crítica dos agentes sociais, uma perspectiva distinta da bourdiesiana e da ideia de habitus, que desconsideram essa capacidade crítica, quando não desqualificam os sujeitos sociais considerando-os “fantoches diante das determinações sociológicas” (Duarte, 1996, p. 164). Assim, Boltanski é considerado um representante do que se costumou denominar sociologia da crítica ou sociologia pragmática (Barthe et al., 2016)
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Embora o autor afirme que seu período em Harvard tenha sido mais relevante para as reflexões que empreende sobre o tema. (Rosatti et al., 2014).
O livro em questão, Distant Suffering (1999), foi escrito durante o período em que o autor esteve na Universidade de Princeton, onde realizou leituras sobre filosofia moral e teoria da justiça de matriz anglo-saxã3. Na parte inicial, Boltanski revisita a formação das sociedades modernas (séc. XVII e XVIII), recuperando, para isso, o ensaio empreendido por Hannah Arendt, intitulado A Questão Social (2011). Nele, a autora investiga como os revolucionários franceses, por meio da observação do sofrimento dos milhares de miseráveis de Paris do séc. XVIII, incorporam a piedade em seu discurso de luta pela liberdade e justiça. Nesse contexto, a piedade se distingue do sentimento da compaixão, que seria a capacidade de sofrer junto, por estar mais próxima da solidariedade, que pode ser experienciada a distância. Desta forma, a transformação da piedade em discurso político faz com que o sofrimento do outro seja tratado a distância. Na diferença descrita por Boltanski (1999) entre a Comunhão dos Santos e as fraternidades de penitentes é possível compreender essa passagem de uma ação motivada por aspectos religiosos para uma ação cívica marcada pela distância que busca atender aos sofredores de modo generalizado.
Para alcançar uma generalidade, a política de piedade precisa, no entanto, estabelecer equivalências adotando, para isso, indicadores e dados estatísticos. Porém, a piedade não é inspirada por generalizações e nem números, mas pelo poder da imagem de corpos em sofrimento. Boltanski, inclusive, descreve como os desafortunados devem ser representados: nem como amigos e nem como inimigos, a fim de que a ação que vise eliminar seu sofrimento não esteja comprometida com envolvimentos comunitários ou pessoais, o que inviabilizaria a política de piedade. Essa representação, ainda, deve ser singularizada, mas subqualificada. Cada desafortunado, assim, carrega a imagem de multidões de substitutos.
Portanto, eles devem ser hiper-singularizados por meio de uma acumulação dos detalhes do sofrimento e, ao mesmo tempo, subqualificados: é ele, mas poderia ser outra pessoa; é aquela criança ali que nos faz chorar, mas qualquer outra criança poderia ter feito o mesmo. Em torno de cada desafortunado trazido à tona, uma multidão de substituições se aglomera. Os sofrimentos tornados manifestos e tocantes por meio da acumulação de detalhes também devem ser capazes de se fundir em uma representação unificada. Embora singulares, eles não deixam de ser exemplares (Boltanski, 1999: 12)
O fato de o desafortunado estar distante não implica que o espectador está isento de se comprometer, pois a piedade demanda obrigação moral. Mas como garantir esse comprometimento do espectador? Duas formas de ação são possíveis para assegurar o comprometimento da ajuda: a financeira, no caso das campanhas que solicitam doações dos espectadores, e a fala. Porém, para que a fala tenha efeito de ação, ela precisa contaminar a esfera pública.
Ela também surge nesse momento de formação da sociedade moderna, juntamente com a ideia de espaço público. Cafés, teatros, o surgimento da imprensa... ambientes comunicacionais que integram esse espaço público. Conforme escreve Boltanski:
Na literatura referente à constituição da esfera pública, particularmente quando vista em sua relação com a formação da concepção moderna de jornalismo, é geralmente aceito que deve haver uma conexão entre a insistência da presença de um observador externo e separado e a demanda por neutralidade, objetividade, no sentido da imparcialidade e, consequentemente, tolerância (1999: 30).
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Termo também utilizado por Hannah Arendt no ensaio já mencionado para se referir à massa de trabalhadores e miseráveis de Paris e Londres dos séculos XVIII e XIX dos quais era impossível de se desviar o olhar.
Neutralidade e objetividade são premissas inquestionáveis quando se trata de medidas econômicas ou decisões políticas. Mas e quando o que está em jogo é o espetáculo do sofrimento?4 Nesse caso, as condições do debate se modificam, uma vez que a urgência se impõe e é necessário um comprometimento das pessoas com a causa apresentada (1999: 30)
Diferentemente de relações comunitárias, em que a narrativa sobre o sofrimento é feita oralmente e vai se transformando, na esfera pública a narrativa precisa ser homogênea e as pessoas precisam receber a mesma informação, pois ela se torna passível de verificação. Mas, “como se admitiria a integração dos sofrimentos diversos e locais dentro de um quadro geral nutrido por exemplos particulares necessários para a demonstração da política da piedade?” (Boltanski, 1999: 32). Isto é, como é possível fazer emergir o sentimento de piedade, trazendo detalhes do caso que se está apresentando – sendo que também é necessário resguardar os sofredores representados de uma exibição sensacionalista? Para o autor, é necessário que a política de piedade seja articulada de tal modo que possibilite superar essa tensão, combinando a declaração de um espectador que não esteja diretamente envolvido com a causa apresentada, mas que, em vista do que observa, comprometa-se com a ação em prol da eliminação do sofrimento. Para Boltanski, é o espectador quem conecta o caráter universal da política à particularização.
O espectador do sofrimento
O grande inspirador do autor para tratar desse tema é Adam Smith que, em Teoria dos Sentimentos Morais (2015), desenvolve a ideia da capacidade reflexiva do espectador. Quando se compromete moralmente com o que vê, ele passa por uma transformação. Em um primeiro momento, observa o sofredor e internaliza seu sofrimento, simpatizando-se com ele. Em um segundo momento, ele narra a outras pessoas aquilo que viu e os sentimentos que aquilo lhe despertou. O simpatizar-se com o outro não significa sentir sua dor, mas imaginá-la. Por exemplo, o espectador não sente a dor do parto de uma mulher grávida, mas imagina essa dor. Assim, é por meio do poder da imaginação que a distância entre espectador e sofredor é superada.
O espectador, impactado com o que viu, conversa com os outros, mas isso não é suficiente para provocar uma mobilização em torno de uma causa. Para isso, é necessário haver uma convergência de percepções. Para Boltanski, isso poderia ser feito por meio de formas expressivas, como contos, músicas, filmes, novelas, entre outras, que poderiam articular imaginações em prol de uma causa. Mas, para que isso efetivamente ocorra, é necessário utilizar uma fórmula que combine aspectos particulares do sofredor, ao mesmo tempo em que a situação representada seja generalizada ou universal o suficiente a fim de tornar possível a política de piedade.
[...] essas formas expressivas devem estar suficientemente desvinculadas de contextos empíricos precisos e devem incluir descrições suficientemente flexíveis para permitir sua reaplicação a uma gama bastante ampla de situações concretas, cujo desenvolvimento imaginativo elas promoverão (Boltanski, 1999: 51).
Assim como o espectador se divide entre observador desinteressado e agente de transformação, a imaginação também passa por processo análogo. Ela pode se voltar para o agressor, o responsável pelo sofrimento do outro, ou para o benfeitor, isto é, alguém que alivia ou elimina esse sofrimento. Então, as narrativas sobre o sofrimento podem ser criadas, considerando-se o que se deseja focar e o que se espera do espectador. Se se deseja causar sua indignação para que ele realize uma denúncia, é preciso fazer uma descrição do tratamento que o desafortunado recebeu do agressor; se se deseja causar seu enternecimento, é preciso exibir a ação do benfeitor que aliviou o sofrimento. De qualquer forma, essas construções narrativas precisam se conectar com mundo real, mesmo que elas próprias não sejam realistas (Boltanski, 1999: 53).
A pesquisadora Lilie Chouliaraki (2006) também lastreia sua pesquisa sobre a relação entre o sofrimento a distância e o espectador nas reflexões de Boltanski, contribuindo enormemente em termos de método de análise, embora seu foco esteja em notícias televisivas. O que efetivamente lhe interessa é o modo como os sofredores estão representados nessas notícias e como a cena do sofrimento é narrada. Para isso, desenvolve um método próprio de análise das notícias.
Como guia para avaliar as questões éticas trazidas pelas notícias que expõem o sofrimento, Chouliaraki emprega o conceito de phrónesis (“frônese”), de Aristóteles. Segundo ela, questões relacionadas ao papel ético da mídia são normalmente compreendidas como questões “grandes”, no sentido de que se tornam argumentos relacionados a padrões universais morais ou de valores comunitários. Porém, ela deseja fugir desses “grandes” debates, tratando-os dentro de exemplos concretos, recorrendo, então, à ideia de “frônese”, que ela própria traduz como prudência. Ao adotar “frônese”/prudência, ela traz a questão ética da mídia para a perspectiva da práxis. E daí vem seu interesse em compreender de que como a mídia elabora a notícia sobre sofredores a distância: como um caso que necessita ação ou representando os sofredores sem nenhuma conexão com os espectadores? Daí a importância que ela deposita nos recursos visuais empregados nas notícias: eles são capazes de despertar emoções no espectador?
Como podemos diferenciar representações do sofrimento que podem apenas derramar uma lágrima do espectador daquelas que efetivamente fazem diferença na vida dos sofredores? A presença ou ausência da opinião pública e a deliberação de especialistas nas notícias é importante para tornar o sofrimento a distância uma causa moral para o público da mídia? (Chouliaraki, 2006: 7)
Ou seja, quais estratégias de engajamento são utilizadas pela mídia ao noticiar o sofrimento? Elas o focam como algo importante ou não? Para isso, ela cria um método que chama de “analítica da mediação” (“analytics of mediation”). Trata-se de uma análise que integra a semiótica, para evidenciar a articulação da linguagem audiovisual produzida na própria criação da notícia, às relações de poder latentes em seu discurso. Os aspectos que dizem respeito à articulação dessa linguagem midiática (que ela chama de tecnologias de registro verbal e visual) são chamados pela autora de “hipermediacia”. Os aspectos exteriores dessa construção, e que justamente dizem respeito à relação entre espectador e sofredor, são chamados de “imediacia”. Segundo Chouliaraki, fazer essa distinção é importante para separar os dois níveis de análise: a multimodal e a crítica do discurso.
De um lado, nos ajuda a focar a análise de como a produção de significado sobre o sofrimento ocupa espaço na tela da televisão como uma realização hipermediada – o que eu chamo abaixo de análise multimodal. Por outro, nos ajuda a focar na análise de como as notícias despertam emoções e desejos de envolvimento como uma realidade imediada para o espectador – o que eu chamo de análise crítica do discurso (2006: 71).
Enquanto a análise multimodal se relaciona com a semiótica no interior da própria construção da notícia, a análise crítica do discurso se preocupa com as relações sociais que dividem o mundo em termos de zona do espectador e zona do sofredor ou em termos do espaço-tempo de segurança e do espaço-tempo do perigo.
Resumidamente, então, as análises realizadas pela autora são balizadas por três categorias ou atributos da notícia:
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multimodalidade (hipermediacia), que diz respeito às estratégias semióticas utilizadas pela mídia para apresentar o sofrimento a distância;
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a relação espaço-tempo (imediacia), que revela o eixo proximidade/distância entre a realidade do sofredor e a realidade do espectador e o eixo urgência/finalidade do sofrimento apresentado.
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agência, que diz respeito ao modo como os sofredores estão representados na cena e à presença (ou ausência), simbólica ou não, dos malfeitores ou benfeitores na notícia, o que direcionaria os sentimentos despertados no espectador, conforme já sinalizado por Boltanski (indignação, caso o foco esteja no malfeitor, ou enternecimento, caso o foco esteja no benfeitor).
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Os termos usados pela autora são “adventure news, “emergency news” e “ecstatic news”. Optamos por traduzí-los de modo substantivado para que a adjetivação não sugira qualificações positivas ou negativas a cada tipo de notícia.
Por fim, a partir da combinação dessas três categorias, a autora identifica três regimes de piedade relacionados às notícias: notícias-aventura, notícias-emergência e notícias-extáticas.5 As notícias-aventura são aquelas cuja combinação das categorias exibem o sofrimento sem despertar a piedade, como notícias de enchentes em países longínquos. As notícias-emergência são aquelas capazes de despertar a piedade, como o caso dos imigrantes africanos que arriscam suas vidas cruzando o Mediterrâneo em pequenos botes. E as notícias-extáticas são aquelas que também despertam a piedade, mas são notícias espetaculares, que circulam no mundo todo, como aquelas que trataram dos ataques do 11 de setembro de 2001 ou do tsunami da Indonésia, ocorrido em 2004.
Para os propósitos da nossa investigação, consideramos interessantes as categorias de análise criadas pela autora e discutiremos, a seguir, se e como seria possível conciliá-las com as reflexões de Boltanski considerando nosso objeto de estudo.
2. Metodologia
Ao longo da apresentação feita sobre Boltanski, destacamos alguns critérios a fim de avaliar o potencial das propagandas selecionadas para incitar a piedade e levar o espectador a experienciar duas formas de sentimento: a indignação, que leva à denúncia, e o sentimento de cuidado ou enternecimento com o outro.
Como Boltanski nos alerta, a piedade não é despertada pela estatística, sendo necessário para isso, exibir “corpos em sofrimento”. Assim, levantamos as seguintes perguntas: como as vítimas de violência estão representadas? De forma singularizada em suas particularidades? Ou estão subqualificadas? Qual potencial tem essa vítima de “carregar a imagem” de milhares de outras vítimas, tal como nos fala o autor?
Quanto à fórmula para a criação das formas expressivas, é preciso considerar se as propagandas combinam mais aspectos particulares ou mais aspectos generalizados de uma situação. Quais elementos narrativos são utilizados para conectar o espectador com a causa apresentada? A história contada traz detalhes do caso e os nomes dos envolvidos na situação? Ou apresentam contextos genéricos? De que forma a própria linguagem audiovisual dessas propagandas é utilizada para fazer essa combinação? Teria um tom mais documental ou dramático?
Por fim, quais os objetivos das propagandas: elas convocam o espectador à denúncia? Ou solicitam doações financeiras para captarem recursos? Ou procuram provocar o enternecimento do espectador? Nesse sentido, as narrativas representam ações de agressores ou de benfeitores? Quão personalizados eles estão?
Compreendemos que as questões acima colocadas estejam contempladas nas três categorias descritas por Chouliaraki, embora não necessariamente dentro das duas estruturas analíticas criadas por ela, ou seja, a de multimodalidade e a de crítica do discurso, pois os objetivos das notícias e os objetivos das propagandas sociais são muito distintos. Mesmo que ambos os discursos midiáticos respondam aos regimes de poder em nossa sociedade, as propagandas sociais devem estar articuladas a políticas públicas que, por sua vez, devem se pautar por indicadores e dados estatísticos objetivos, e não por possíveis lógicas mercadológicas que fazem com que os veículos jornalísticos espetacularizem certas notícias em detrimento de outras.
Assim, entendemos que, devido às propagandas sociais terem um objetivo claro de alcançar o espectador – sejas elas bem-sucedidas ou não em seus propósitos, adaptamos as três categorias analíticas por Chouliaraki sem separá-las de acordo com seu médoto bi-analítico (semiótico e analítico crítico do discurso).
Portanto, em termos de multimodalidade, ou seja, de estratégias semióticas da linguagem audiovisual, podemos levantar as seguintes perguntas:
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Qual linguagem audiovisual é adotada? É um filme, um vídeo, uma animação? As cenas são mais estáticas ou mais dinâmicas?
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Há trilha sonora?
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Há narração na cena? O que é narrado? Há exibição de letterings ou disclaimers aplicados na propaganda?
Quanto à relação espaço-tempo, levantamos estas perguntas:
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O espaço ou ambiente representado tem participação ativa na história ou é apenas um plano para o desenvolvimento da ação?
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Os espaços de perigo e segurança estão entrelaçados ou estão estritamente separados?
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A ação acontece no presente, passado ou futuro? Há entrelaçamento temporal na propaganda?
E, quanto ao agenciamento:
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Agentes de dor ou de alívio dela estão representados na cena? Se sim, qual a participação de cada um? De que forma eles agem para causar a dor ou aliviá-la?
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A narração (se houver) evoca esses agentes explicitamente?
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Qual direcionamento emocional elas podem provocar no espectador?
Estas perguntas servirão para nos guiar na análise das propagandas selecionadas para este trabalho. Então, a seguir, vamos abordá-las.
3. Propagandas
A propaganda brasileira
A primeira propaganda que analisaremos foi produzida pelo governo brasileiro (Brasil, 2022). Intitulada “Campanha de enfrentamento à violência contra a mulher”, ela pode ser dividida em duas partes. Na primeira, é possível ver, em primeiro plano, um casal, sentado em um sofá, comendo pipoca e assistindo televisão. Aos poucos a câmera se desloca para enquadrar, aos fundos, um outro casal em situação de conflito: o homem segura um celular e gesticula agressivamente a uma mulher. Enquanto isso, uma voz feminina em off narra dados estatísticos de violência contra a mulher: “A cada minuto, oito mulheres são vítimas de agressão no país. De cada dez mulheres, três foram ameaçadas de morte pelo parceiro atual ou pelo ex. A cada sete horas um feminicídio acontece. Violência contra a mulher é crime.”
Na segunda parte do filme, são apresentadas três cenas em contextos distintos. Na primeira, três mulheres estão numa cozinha. Uma delas, aparentemente mais jovem, é acolhida por outra mais velha, enquanto a terceira usa o telefone. Na segunda cena, aparentemente numa sala, duas mulheres, sentadas à uma mesa, conversam, enquanto a mais velha conforta a mais nova. Na última cena, em um escritório, uma mulher é confortada por outra mulher. A narração finaliza com o texto: “Nas próximas horas, alguém perto de você pode ser vítima. Por isso, é tão importante prestar atenção. Fique atento aos sinais. Escute, Acolha. Denuncie." São, então, exibidos os canais de comunicação para denúncia e a chancela do Ministério da Mulher, Família de Direitos Humanos.
Na primeira parte do filme, a cena do casal em situação de tranquilidade dura cerca de quinze segundos, enquanto a do casal, aos fundos, em situação em conflito dura dois segundos (Fig. 1). Há, portanto, uma relação assimétrica entre ambas que pende mais para a tranquilidade que o conflito. Embora a narração dos números de violência procure causar um choque nessa tranquilidade por meio do contraste, o efeito é nulo, pois o casal do primeiro plano não se dá conta do que ocorre na janela ao lado. A predominância dos tons azuis dessa primeira parte também reforça o aspecto de equilíbrio e tranquilidade (Chevalier, Gheerbrant, 2022).
Figura – Relação entre planos na 1ª parte do filme "Campanha de enfrentamento à violência contra a mulher "
Nas três cenas da segunda parte do filme, destacamos o papel das mãos, que ora aparecem entrelaçadas, ora sobrepostas (Fig. 2). Os zooms nessas gesticulações possivelmente visam despertar o sentimento de cuidado e enternecimento do espectador, graças à ação das benfeitoras que confortam as vítimas. Também notamos a predominância de tons pasteis e uma luz difusa, que reforçam esse clima de serenidade.
Figura – Destaque para as mãos no filme "Campanha de enfrentamento à violência contra a mulher"
A propaganda portuguesa
O vídeo da campanha portuguesa foi produzido pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). Trata-se de uma animação que ocorre em duas partes. A primeira inicia exibindo o interior de uma casa, onde se vê uma criança desenhando sobre um papel no chão e uma mãe na cozinha. A situação aparenta tranquilidade, reforçada pela trilha sonora “Clair de Lune”, de Claude Debussy. Uma porta se abre e aparece a sombra de uma figura masculina. Então, a menina esconde o rosto e a mãe foge tão rapidamente que um objeto cai. A música começa a ser distorcida. O corredor da casa é destacado, de onde se vê um homem de costas, em posição de ataque, e a mãe de frente, em posição de defesa. Ouve-se um som semelhante a um rosnado. O homem a persegue pelo corredor. Cenas de violência são sugeridas pelas sombras projetadas até o momento em que a mulher é arremessada através do corredor, chocando-se contra a parede oposta (Fig. 3). A menina se aproxima da mãe, que olha para a filha. Um zoom no rosto da menina exibe lágrimas em seus olhos (Fig. 4). Na segunda parte da animação, vemos a mãe junto à filha, de frente para a janela que dá para a rua. Nesse momento, uma voz feminina começa a narrar: “Enquanto houver uma mulher vítima de violência doméstica não vai ficar tudo bem. Denuncie. E peça ajuda.” Enquanto isso, a menina cola seu desenho de um arco-íris em tons de cinza na janela. Na rua, pessoas se amontoam para observá-las. Uma pessoa pega um celular e simula uma ligação. Em seguida, são projetados os números para denúncia. O desenho do arco-íris continua na janela, mas agora metade dele é cinza e a outra metade é colorida. Ao final, são exibidos os logos das instituições apoiadoras da causa, juntamente à seguinte mensagem: “25 de novembro. Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as mulheres. #Portugalcontraaviolencia”.
Figura – Destaque para a mulher sendo arremessada na animação "Violência doméstica"
Figura - Destaque para os olhos da animação "violência doméstica"
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O termo mangá é normalmente associado às histórias em quadrinhos japonesas e os animês praticamente correspondem a mangás animados. Muitos dos animês que se popularizaram mundialmente a partir dos anos 1990 começaram como mangás (Luyten, 2012; Koyama-Richard, 2022).
A linguagem utilizada na animação e os traços remetem ao mangá e aos animês japoneses6, que valorizam as expressões faciais, com destaque para os olhos, e dão movimento às ações com recursos simples, porém com grande dramaticidade (sem necessariamente representar o movimento quadro a quadro, como o que caracteriza as produções da Disney, por exemplo). Cenas como a do homem em posição de ataque, a da mulher sendo arremessada pelo corredor e o zoom no rosto da criança são evidências dessa dramaticidade. Elas ocorrem no corredor da casa, que tem, assim, uma participação ativa na violência doméstica. Esse corredor também é enquadrado de modo inclinado, intensificando a carga dramática pelo desequilíbrio e a assimetria da situação (fragilidade:brutalidade).
Além disso, o enquadramento da primeira parte da animação ocorre na altura dos olhos da criança, mais próximo do chão, o que indica que o filme procura sensibilizar o espectador colocando-o na perspectiva dela, que vê e vivencia a situação de violência e brutalidade. A segunda metade do filme, que é o momento do pedido de ajuda, é marcado pelo desenho do arco-íris. Sua representação inicial unicamente em tons de cinza e depois sua transformação para o colorido pode ser interpretada como uma ponte ou passagem para a esperança (Chevalier, Gheerbrandt, 2022).
Outros elementos da propaganda reforçam a polarização fragilidade - brutalidade, como as cores e a trilha sonora. A animação tem a predominância do azul, que, como vimos na propaganda brasileira, costuma representar tranquilidade, e de tons amarelos e alaranjados, que são utilizados justamente nas cenas de violência. Quanto à música, “Claire de Lune”, de Claude Debussy, ela é normalmente associada à delicadeza, como é a cena inicial da animação, com a criança desenhando e a mãe cozinhando. Assim que surge o homem, a música é distorcida, do mesmo modo que o corredor é enquadrado de modo inclinado. Outros sons são acrescidos, como o do homem rosnando e objetos caindo, intensificando esse desequilíbrio. A música volta ao normal a partir da segunda metade, juntamente com a narração e o pedido de ajuda simbolizado pelo desenho.
A propaganda britânica
Embora a propaganda britânica (UK, 2022) não esteja explicitamente relacionada à violência doméstica, ela também se relaciona com a política da piedade, porém sob o ângulo do benfeitor. Intitulada “Enough – how we can all tackle violence against women and girls” (UK, 2022), o filme mostra três situações de abuso masculino. Na primeira, um grupo de amigos estão reunidos em um parque onde gravam cenas com seus celulares. Quando uma moça passa por eles, um dos rapazes resolve provocá-la e o colega reage, chamando sua atenção: “Mate, that´s not ok”. Então, uma narração em off diz: “Enough. We can call out our mates for harassing women.” Na situação seguinte, uma mulher vê a vizinha sendo intimidada pelo companheiro na frente de sua casa. A narração diz: “Enough. We can let victims of coercive control know that support is available.” Na última cena, no interior de um bar, um casal faz uma selfie e vê, ao fundo, um homem assediando uma mulher. Novamente, uma narração diz: “Enough. We can help to report sexual assault.” e complementa: “There are many ways we can safely tackle violence against women and girls”.
Um dos aspectos mais interessantes nesse filme é o modo como outras mídias participam ativamente das situações em que ocorrem os abusos masculinos. Por exemplo, os amigos do início gravam cenas deles próprios pelo celular (Fig. 5). É por ela que vemos, como observadores das redes sociais, a primeira cena de abuso masculino. Acompanhamos, em seguida, a cena da mulher sendo intimidada pelo companheiro através da captura da câmera de vigilância, instalada na guarnição de uma porta (Fig. 6). E, na última situação, o casal que faz uma selfie acaba enquadrando a cena de assédio que acontece atrás de si (Fig. 7). Desta forma, o espectador é colocado como observador em primeira pessoa das situações de abuso representadas.
Figura - Destaque para o vídeo gravado pelo grupo de rapazes em "Enough"
Figura - Destaque para a captura da câmera de vigilância, de "Enough..."
Figura - Destaque para a selfie do casal que enquadra o abuso em "Enough..."
A seguir, avaliaremos como cada propaganda se comporta a partir das reflexões de Boltanski e a partir dos três critérios definidos por Lilie Chouliaraki quanto ao propósito de despertarem a piedade e os sentimentos de indignação ou enternecimento.
Discussão
A linguagem audiovisual adotada pela propaganda brasileira possui um tom documental ao narrar estatísticas, enquanto exibe cenas de mulheres em sofrimento, mas que pouco se conecta com elas. A única cena de violência, por exemplo, acontece muito rapidamente e em segundo plano. A narração também solicita que o espectador preste atenção aos sinais de violência, mas eles não estão evidenciados nas imagens, o que seria muito importante para orientar possíveis testemunhas sobre como reconhecê-los. O próprio casal do início do filme não se atenta sobre o que está ocorrendo na janela ao lado. Teria sido mais efetivo inverter os planos, mostrando o casal em conflito em primeiro plano e o outro em segundo plano, que perceberia a situação e ligaria para o canal de denúncias, o 180, ou a polícia, por exemplo. Além da narração, há uma trilha sonora, que não tem participação de destaque nas representações.
- Note de bas de page 7 :
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Mulheres negras (entre pretas e pardas) representam 65,5% das vítimas.
Na única cena que trata da violência propriamente dita no filme, uma vítima e um agressor são representados muito rapidamente, como já mencionado. As demais vítimas são aquelas confortadas por suas benfeitoras, mas não há conexão com o que é narrado. Por sinal, a única mulher negra do filme é a do casal em situação de tranquilidade, o que diverge das estatísticas de violência apresentadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), que mostram que a mulher negra é a principal vítima da violência doméstica.7 Os ambientes representados também têm pouca participação nas situações de perigo e segurança, e não há referências específicas quanto ao local e nem ao tempo (passado, presente ou futuro) em que se passa a ação.
Quanto à propaganda portuguesa, como já destacamos, ela usa uma linguagem semelhante à dos animês, com ilustrações e animações desenvolvidas com forte carga dramática e emocional. Ao colocar o espectador na perspectiva da criança, a propaganda procura despertar-lhe a indignação e, consequentemente, o impulso para a denúncia. A trilha sonora participa ativamente da ação, assim como os ambientes representados e as cores predominantes. Há um agressor presente, mas ele é representado de modo mais abstrato. As duas vítimas, a criança e a mulher, são representadas com mais detalhes, mas especialmente a criança, principalmente devido ao zoom em seu rosto. A ação acontece num espaço-tempo indefinidos; não é possível identificar onde poderia ser e nem em que época.
Por fim, a propaganda britânica, como vimos, integra outras linguagens midiáticas em sua própria narrativa (o vídeo para as redes sociais, a captura da câmera de vigilância e a selfie), fazendo com que o espectador se torne um observador em primeira pessoa das situações apresentadas. Também devido ao modo como são utilizados esses recursos, é possível afirmar que a ação tem a preocupação de se comunicar com o público dos dias atuais. Em cada uma das três cenas há um agressor, uma vítima e, ao menos, um benfeitor. Enquanto os agressores e as vítimas aparecem rapidamente, o destaque está nos benfeitores, que aparecem em destaque para coibir o comportamento abusivo ou oferecer apoio à vítima. Nas três situações, a narração explicita de que modo o espectador pode ajudar a reduzir o abuso contra mulheres e jovens. Portanto, o propósito da propaganda não é estimular a denúncia, como as anteriores, mas educar o público a demonstrar a disposição em ajudar uma mulher quando em situações de abuso ou de violência. Nas três situações representadas as vítimas estão em ambiente externo ou público, podendo ser observadas por terceiros, o que reforça o papel do espectador-observador em ajudar a protegê-las. Nesse sentido, podemos deduzir que os ambientes têm papel ativo nas ações representadas.
Dispusemos, então, resumidamente, essas considerações em uma tabela (Tab. 1) a fim de facilitar a comparação entre as propagandas quanto ao potencial de cada uma de engajar o espectador para a causa que apresentam.
Tabela – Comparação entre as propagandas a partir dos critérios de Chouliaraki
Multimodalidade |
Espaço-tempo |
Agência |
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Propaganda brasileira |
Remete à linguagem documental. Trilha sonora e representações dos ambientes não interferem na ação. Espectador é convocado explicitamente para a denúncia, mas a construção foca no sentimento de cuidado e enternecimento. Baixa complexidade, pois a articulação dos elementos que compõem a narrativa são estáticos e pouco interferem nela. |
Espaço e tempo indefinidos. |
Há breve representação de um agressor e de uma vítima. Há outras três vítimas, mas não estão em contexto de violência. Há representação de benfeitores, que confortam essas vítimas. |
Propaganda portuguesa |
Remete à linguagem dos animês. Utilização de elementos com carga dramática elevada. Trilha sonora e representação dos ambientes participam ativamente da ação. O enquadramento coloca o espectador na perspectiva da criança com o intuito de despertar-lhe a indignação. Alta complexidade na conexão entre os elementos narrativos. |
Espaço e tempo indefinidos. |
Há representação de um agressor, mas sem detalhes. Há duas vítimas representadas com mais detalhes, especialmente a criança. Há representação de um benfeitor ou testemunha, mas sem caracterizações específicas. |
Propaganda britânica |
Articula diferentes linguagens midiáticas. Coloca o espectador como observador-cúmplice das cenas. A narração explícita o convoca a agir como benfeitor (ajudar a proteger as mulheres e jovens). Alta complexidade na conexão entre os elementos narrativos. |
Espaço indefinido. Tempo definido (atualidade). |
Vítimas e abusadores são representados rapidamente. Benfeitores estão bem representados. |
Fonte: elaboração própria
Com base nos critérios definidos, podemos concluir que, embora a propaganda brasileira utilize dados estatísticos e outros recursos audiovisuais para provocar a indignação do espectador, possivelmente a piedade não seria suscitada, pois, como vimos em Boltanski, ela não é despertada por números, mas por “corpos em sofrimento”, que estão pouco representados na propaganda. Considerando a fórmula para a criação de formas expressivas de Boltanski, a propaganda caminha para uma maior universalização (abstração dos números, indefinição de espaço-tempo), dando pouca ênfase a contextos mais específicos (a única cena de violência representada é muito breve). Além disso, embora a propaganda procure engajar o espectador para a denúncia, o que ela explora é o sentimento de enternecimento mais do que o de indignação, devido ao foco no cuidado dos benfeitores. Assim, é possível que a propaganda brasileira tenha grandes chances de falhar em seu propósito.
Quanto à propaganda portuguesa, concluímos que, por equilibrar aspectos que caminham para um maior universalismo (o agressor é mais abstrato, não há definição de espaço-tempo) e outros aspectos que caminham para uma maior particularização (vítimas e ambiente de violência mais detalhados), concluímos que ela tem um potencial maior de incitar a piedade e engajar o espectador para a denúncia.
Por fim, a propaganda inglesa também equilibra melhor aspectos mais universais (agressores e vítimas representados brevemente e espaço indefinido) e aspectos particulares (benfeitores bem representados em contextos específicos), além de colocar o espectador em primeira pessoa nas situações, o que demonstraria seu potencial maior para engajá-lo para o sentimento de cuidado e proteção com as vítimas.
Considerações finais
O intuito deste trabalho foi avaliar como a política de piedade pode ser um instrumento importante de reflexão para se criar propagandas sociais que tratem de temas relacionados ao sofrimento. A partir das reflexões de Boltanski e os critérios de Lilie Chouliaraki, foi possível compreender se as propagandas analisadas teriam potencial para despertar a piedade dos espectadores e provocar a indignação ou o sentimento que os levaria à denúncia ou o cuidado com o próximo. Dos três filmes analisados, percebemos que a propaganda brasileira é a que tem menos potencial, uma vez que seu objetivo explicitado é a denúncia, mas a construção audiovisual foca principalmente na ação dos benfeitores. Por sua vez, as propagandas portuguesa e britânica, à luz dos critérios definidos, teriam um potencial maior de despertar a piedade, porém com objetivos diferentes. Enquanto a propaganda portuguesa também vise a denúncia por meio dos recursos audiovisuais que focam a brutalidade do agressor e seus impactos, a propaganda britânica visa, de modo não explícito, o comportamento masculino abusivo.
Ao nosso ver, as políticas públicas brasileiras que procuram reduzir os alarmantes números de violência doméstica contra a mulher, deveriam também incluir campanhas semelhantes que foquem o comportamento abusivo masculino, tanto campanhas para o público adulto, chamando a responsabilização dos homens e seu papel em estatísticas lamentáveis, mas também campanhas educativas para crianças e adolescentes. Esses aspectos, inclusive, estão presentes na própria legislação brasileira (a Lei Maria da Penha), que considera não apenas punir os criminosos, mas também prevenir e erradicar esse tipo de violência. Por fim, também seria fundamental produzir outros materiais didáticos orientando as mulheres, principalmente as de baixa renda e de baixa escolaridade, acerca dos seus direitos básicos.
Desta forma, esperamos que as análises aqui apresentadas possam contribuir para a reflexão sobre a política de piedade do ponto de vista da produção midiática, além também fornecer subsídios para uma criação mais eficaz de tais propagandas.