Machismo, violência doméstica e influência das mídias na cultura brasileira Machismo, domestic violence and the influence of the media on brazilian culture

Larissa Angelini de Andrade GIANVECCHIO 
y Josiane Peres GONÇALVES 

https://doi.org/10.25965/trahs.6069

Neste estudo problematizamos a questão do machismo, que é responsável por validar comportamentos que originam e corroboram com a violência doméstica, a ponto de resultar em um paradigma que perpetua na atualidade. Ao caminhar na contramão dessa situação, e valendo-se de mecanismos culturais que desconstroem o paradigma mencionado, investigamos o quanto as mídias brasileiras são agentes transformadores da realidade social, sobretudo por utilizarem as teledramaturgias como forma de conscientização da população. Nesta perspectiva, objetivamos analisar algumas contribuições das mídias no processo de desconstrução do paradigma do machismo e da violência doméstica no Brasil. A pesquisa bibliográfica aborda questões como: sociedade patriarcal e machismo; violência doméstica e legislação brasileira; Lei Nº 13.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha; influência exercida pelas mídias na desconstrução do machismo e da violência doméstica, entre outras. Mediante o estudo realizado, percebemos que, a partir dos anos 2000, diversas teledramaturgias e propagandas abordaram questões inerentes à violência doméstica e ao machismo, apontando para a necessidade de superação dessa problemática social na cultura brasileira.

Dans cette étude, nous problématisons la question du machisme, responsable de la validation des comportements qui génèrent et corroborent la violence domestique, au point d'aboutir à un paradigme qui se perpétue aujourd'hui. En allant à contre-courant de cette situation et en utilisant des mécanismes culturels qui déconstruisent le paradigme mentionné, nous avons étudié comment les médias brésiliens sont des agents de transformation de la réalité sociale, notamment en utilisant les séries télévisées et les publicités comme moyen de sensibilisation de la population. Dans cette perspective, nous souhaitons analyser quelques contributions des médias dans le processus de déconstruction du paradigme du machisme et de la violence domestique au Brésil. La recherche bibliographique aborde des questions telles que : la société patriarcale et le machisme ; violence domestique et législation brésilienne ; Loi n° 13 340/06 connue sous le nom de Loi Maria da Penha ; l’influence exercée par les médias pour déconstruire le machisme et la violence domestique, entre autres. Grâce à l'étude réalisée, nous avons que, à partir des années 2000, plusieurs séries télévisées et publicités abordaient des questions nous avons montré à la violence domestique et au machisme, soulignant la nécessité de surmonter ce problème social dans la culture brésilienne.

En este estudio problematizamos el tema del machismo, el cual se encarga de validar conductas que originan y corroboran la violencia doméstica, al punto de resultar en un paradigma que se perpetúa en la actualidad. Yendo en contra de esta situación, y utilizando mecanismos culturales que deconstruyan el paradigma mencionado, investigamos cómo los medios brasileños son agentes de transformación de la realidad social, especialmente mediante el uso de dramas televisivos y anuncios publicitarios como forma de sensibilización de la población. Desde esta perspectiva, pretendemos analizar algunas contribuciones de los medios de comunicación en el proceso de deconstrucción del paradigma del machismo y la violencia doméstica en Brasil. La investigación bibliográfica aborda temas como: sociedad patriarcal y machismo; violencia doméstica y legislación brasileña; Ley nº 13.340/06 conocida como Ley Maria da Penha; influencia ejercida por los medios de comunicación en la deconstrucción del machismo y la violencia doméstica, entre otros. A través del estudio realizado, nos dimos cuenta de que, a partir de la década de 2000, varios dramas televisivos y anuncios publicitarios abordaron cuestiones inherentes a la violencia doméstica y al machismo, señalando la necesidad de superar este problema social en la cultura brasileña.

In this study we problematize the issue of machismo, which is responsible for validating behaviors that originate and corroborate domestic violence, to the point of resulting in a paradigm that perpetuates today. By going against this situation, and using cultural mechanisms that deconstruct the mentioned paradigm, we investigated how Brazilian media are agents of transformation of social reality, especially by using television dramas and advertisements as a way of raising awareness among the population. From this perspective, we aim to analyze some contributions from the media in the process of deconstructing the paradigm of machismo and domestic violence in Brazil. Bibliographical research addresses issues such as: patriarchal society and machismo; domestic violence and Brazilian legislation; Law No. 13,340/06 known as the Maria da Penha Law; influence exerted by the media in deconstructing machismo and domestic violence, among others. Through the study carried out, we realized that, from the 2000s onwards, several television dramas and advertisements addressed issues inherent to domestic violence and machismo, pointing to the need to overcome this social problem in Brazilian culture.

Índice
Texto completo

Introdução

Primeiramente precisamos compreender como é construído o machismo na sociedade brasileira e porque ele é considerado o agente de validação dos comportamentos que originam a violência doméstica. Convém salientar que o instituto do machismo se fundamenta em um sistema muito mais amplo, conhecido popularmente como o sistema patriarcal, no qual o homem exerce o papel de dominação sobre a mulher (Lerner, 2019).

É mediante o sistema patriarcal que o homem recebeu maior prestígio e importância em todos os âmbitos da sociedade brasileira, introduzindo a prática do machismo como um recurso de defesa desse lugar social. Contudo, essa “defesa” muitas vezes ocorre pela manifestação da violência contra a mulher que “ousa” não aceitar esse lugar de subordinação que lhe foi atribuído.

A validação da violência por meio do machismo foi aceita socialmente por muitas décadas no Brasil, sendo considerada “normal”, além de possuir o intuito de diminuir a quantidade de comportamentos tidos como desviantes das mulheres. Prova disso é que muitas mulheres defendiam e ainda defendem tais comportamentos masculinos.

É neste cenário que é construído o paradigma na sociedade brasileira, entendida como uma sociedade fundamentalmente patriarcal, que se utiliza do machismo como estrutura social (Ferreira, 2022). Tal perspectiva é tão verdadeira que somente no ano de 2006 é que foi sancionada a Lei nº11.340/2006, sobre a violência doméstica, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha.

A referida Lei recebeu o nome de Maria da Penha em homenagem a uma das vítimas de violência doméstica, que entre muitas agressões e tentativas de homicídio, acabou ficando paraplégica devido a lesões irreversíveis na sua coluna e medula esquerda. Após todo esse fatídico, Maria da Penha encabeçou a luta pela criminalização mais rigorosa da violência doméstica.

Outro ponto determinante refere-se à influência social exercida pelas mídias brasileiras por meio das teledramaturgias, visto que entre os anos 2000 a 2010 a Rede Globo de Televisão e a Rede Record produziram 13 telenovelas que abordaram a violência doméstica “acompanhando os debates e o desenvolvimento de legislações sobre agressões motivadas por gênero” (Caminhas, 2020: 425).

Desse modo, as teledramaturgias foram utilizadas como uma ferramenta de conscientização da população em massa, de que a violência doméstica é uma prática inaceitável, visando a quebra do paradigma do machismo e do patriarcado que embasaram por décadas a prática dessa violência de gênero. A mudança da mentalidade social brasileira perpassa pelas teledramaturgias, pelas propagandas, pelas legislações, tanto brasileiras quanto internacionais.

Por fim, podemos verificar ao longo dessa pesquisa que, por meio das telenovelas, as mídias tiveram um papel importante na alteração da cultura brasileira, pois a teledramaturgia, com seus altos índices de audiência, contribuiu para a compreensão social de que a mulher tem os mesmos direitos que o homem, não devendo ser subjugada e, principalmente, vítima de qualquer tipo de agressão. É bem verdade que ainda estamos longe da erradicação da violência doméstica, mas uma tomada de consciência já foi realizada por parte da sociedade brasileira.

Sociedade patriarcal e machismo na cultura brasileira

Nesta pesquisa entendemos que o machismo é um instituto que possui suas raízes muito bem arraigadas na cultura brasileira, o qual encontra guarida no sistema patriarcal, que durante décadas se valeu da cultura para se estabelecer e se firmar (Lerner, 2019). Nesta perspectiva, destacamos que:

O patriarcado é, por conseguinte, uma especificidade das relações de gênero, estabelecendo, a partir delas, um processo de dominação-subordinação. Este só pode, então, se configurar em uma relação social. Pressupõe-se, assim, a presença de pelo menos dois sujeitos: dominador(es) e dominado(s) (Cunha, 2014: 154).

O patriarcado foi responsável por atribuir à mulher menos importância social do que ao homem, visto que a mulher foi alocada no âmbito privado. Ela cuidava do lar, prestava serviços sexuais, procriava e cuidava dos filhos; enquanto o patriarca estava inserido no âmbito público, pois era ele quem trabalhava para o sustento familiar (Lerner, 2019). Sendo assim, o patriarca tinha “a voz de comando” uma vez que ele era o provedor da família e todos (mulher e filhos) dependiam deste homem.

É neste cenário que o instituto do machismo é introduzido no âmbito social, sob a perspectiva de que o homem possui maior prestígio, é quem dá a ordem e não pode e nem deve ser desacatado por ser a pessoa mais importante da família e todos os outros membros lhe devem respeito, obediência e submissão por todos os supostos “benefícios” que ele proporciona. Assim, o machismo se apodera dessa supremacia masculina em relação à feminina e vai além do lugar social que o homem e a mulher estão inseridos, uma vez que:

O machismo é definido como um sistema de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de dominação, de sujeição entre homem e mulher. Esta definição não tem a preocupação de atingir um rigor conceitual a partir de um modelo fechado e abstrato. Mas, ao contrário de conceituar ainda que provisoriamente o machismo, de forma que a investigação possa ser conduzida para dar conta da multiplicidade de suas manifestações concretas dentro de uma unidade de análise. O machismo, enquanto sistema ideológico, oferece modelo de identidade tanto para elemento masculino como para o elemento feminino. Ele é aceito por todos e mediado pela “liderança” masculina. Ou seja, é através desse modelo normalizante que homem e mulher “tornam-se” homem e mulher, e é também através dele, que se ocultam partes essenciais das relações entre os sexos, invalidando-se todos os outros modos de interpretação das situações, bem como todas as práticas que não correspondem aos padrões nele contidos (Drumont, 1980: 81).

O instituto do machismo estabelece o modelo de identidade tanto para homens (dominador/autoridade) quanto para mulheres (dominada/subordinada). Neste aspecto, Gianvecchio (2022) afiança que o domínio estabelecido pelo machismo ultrapassa as relações sociais, se manifestando nos relacionamentos amorosos, nas relações trabalhistas, nas relações familiares, em todos os lugares nos quais os sujeitos estão inseridos.

O machismo deve ser entendido como um problema estrutural da sociedade brasileira e, mesmo diante de inúmeros esforços tanto no âmbito social quanto no âmbito jurídico, o mesmo ainda se manifesta e traz incontáveis prejuízos, ocasionando inclusive casos de violências que resultam na morte da mulher (dominada/subordinada), afrontando os direitos já garantidos na Constituição Federal do Brasil. Logo, o contexto da sociedade patriarcal e do machismo influenciam na existência da violência doméstica que ainda hoje predomina no país.

A violência doméstica e a legislação brasileira

Ao refletir sobre a violência doméstica, é importante compreender o conceito de cultura, a fim de entendermos como ela permeia a construção das feminilidades no Brasil. Dessa forma, destaca-se que:

Exclui-se aqui a ideia de cultura como característica, como propriedade de um dado grupo e se aplica o entendimento de cultura ao movimento, às relações e à produção material e simbólica. Em tal perspectiva, a noção de cultura não se descola das relações sociais e o enfoque recai sobre as percepções e as práticas dos grupos, considerando-se que elas estão a todo instante em movimento e em disputa (Ennes & Marcon, 2014: 280).

Torna-se evidente que os comportamentos encontrados na sociedade brasileira são construções entendidas como culturais e embasadas nos institutos do patriarcado e machismo. Contudo, essas construções não são fixas, ou seja, podem ser alteradas conforme as disputas sociais foram se impondo. Além disso, durante muitas décadas a cultura brasileira foi um instrumento de validação tanto do patriarcado quanto do machismo, em um cenário em que as mulheres foram ensinadas a validar os comportamentos violentos com frases do tipo: “homens são assim mesmo”, ou “é porque eles são homens” e ainda “homens pensam e agem diferente”.

Foi a partir do movimento feminista que se fortaleceu no Brasil na década de 1970 que as mulheres iniciaram uma luta aguerrida contra a cultura do patriarcado e do machismo, buscando melhores condições de vida, direitos e liberdade para fazer suas escolhas, sem precisar ser validada pelo patriarca (pai ou marido). A maior conquista deste movimento foi estabelecida na Constituição conhecida como Cidadã no ano 1988, por estabelecer a igualdade de direitos entre os gêneros. A referida Constituição Federal estabelece que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (Brasil, 1988, grifos nossos).
O inciso I do Art. 5º estabelece o princípio da igualdade, ilustrando que a equidade deve pairar inclusive nas relações entre os gêneros. Nesse mesmo diapasão, encontramos no Art. 3º, IV, da Constituição Federal brasileira que corrobora com esse mesmo entendimento, observemos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Brasil, 1988, grifos nossos).

Importante relatar que mesmo a Constituição Federal instituindo a igualdade dos gêneros explicitamente em seu texto legal, a mesma não alcançou aplicabilidade imediata nas relações sociais, tornando-se necessário a criação de novas leis que são tidas como infraconstitucionais para dar executoriedade à norma constitucional, conforme descritas a seguir.

Lei Nº 9.099/95 no Brasil e violência doméstica

A primeira legislação que abarcou especificamente a violência doméstica no Brasil foi a Lei nº 9.099/95, que não se trata de uma lei específica sobre a temática, pelo contrário, é uma legislação que abarca a competência dos Juizados Cíveis e Criminais. Convém explanar que é atribuído aos Juizados processos de menor complexidade/ menor potencial ofensivo, vejamos:

Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade.
Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. (Brasil, 1995, grifos nossos).

Fica evidente que, apesar de o legislador trazer uma pretensão punitiva a violência doméstica, o mesmo não foi tratado com a seriedade que a temática exige, uma vez que a legislação utilizada não é específica sobre o assunto e atribui ao crime um menor potencial ofensivo, sendo entendido como processo de menor complexidade, cujos critérios de análise são simplicidade, celeridade, economia processual, dentre outros. Desse modo, após 7 anos da previsão constitucional de igualdade de gênero, a legislação que foi criada para ser responsável por abordar a violência doméstica, entendia esse crime como uma contravenção penal, ou seja, infrações penais leves e que possuem penas mais brandas, pois estabelece que:

Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Brasil, 1995, grifos nossos).

A Lei Nº 9.099/95 preocupou-se apenas em afastar de forma cautelar o agressor do lar, domicílio ou local de convivência. Entretanto, entender um crime como contravenção penal é um erro jurídico grave e essa interpretação jurisdicional refletia o entendimento social da época, de que o patriarca da família tinha o direito de exercer domínio, mesmo que de forma violenta.

Outro ponto importante é que a Lei Nº 9.0999/95 atribui aos crimes de menor potencial ofensivo, medidas conhecidas como despenalizadoras, tais como a transação penal, a aplicação de multa ou ainda a pena restritiva de direitos. Essas medidas, quando concedidas, não constam nas certidões de antecedentes e nem nas certidões reincidência, o que prejudica a criminalização da violência doméstica, visto que a vítima ao tomar coragem de realizar a denúncia ainda corria o risco de assistir o seu agressor ser despenalizado. (Dias, 2007: 21).

Apesar de a legislação criminalizar a prática da violência doméstica, quando a análise perpassa pelo entendimento da mulher que foi vítima, o sentimento que reinava era de impunidade e ineficácia do poder judiciário ao arbitrar a pena ínfima ou despenalizar a conduta ofensiva, para um crime tão gravoso, que muitas vezes atentam contra vida da mulher. Assim, uma nova legislação surge no Brasil para atender a essas lacunas da legislação anterior.

Lei Nº 13.340/06 ou Lei Maria da Penha e violência doméstica no Brasil

A Lei Nº 13.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha surge a partir do caso de uma farmacêutica que sofreu inúmeros casos de agressões e tentativas de homicídio, cometidos pelo seu próprio marido, que lhe ocasionaram uma paraplegia irreversível, tornando-se o símbolo da luta da mulher contra a violência de gênero. A fim de ter seu agressor penalizado de forma justa, a vítima, Maria da Penha, se valeu da Corte Internacional de Direitos Humanos para repreender o Brasil e forçá-lo a alterar a legislação da violência doméstica. A reprovação internacional ocorreu de forma tão ferrenha que a Comissão Internacional de Direitos Humanos “responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica [...] e recomendou medidas como simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual” (Dias, 2007, p. 14). Por conseguinte, o Brasil se viu “forçado” a criar uma lei específica, a Lei nº 11.340/2006, com o seguinte preâmbulo:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências (Brasil, 2006).

A legislação, que possui o nome da sua precursora Maria da Penha, tem por finalidade combater a violência doméstica contra a mulher no âmbito familiar ou não, desde que haja intimidade entre as partes ativas e passiva. Para tanto, convém conceituarmos a violência doméstica com base na referida lei.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (Brasil, 2006, grifos nossos).

Um equívoco muito comum no âmbito social brasileiro, é compreender que a Lei Nº 11.340/2006 protege a mulher apenas da violência física, ou seja, mulheres que sofrem agressões físicas, quando na verdade a legislação abarca vários tipos de violência, tais como:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Brasil, 2006, grifos nossos).

A legislação trouxe em seu bojo, além de mais rigor nas penalidades, simplificação do processo, a fim de que a condenação ocorra de forma rápida e eficaz. Outro ponto determinante que inovou a ordem jurisdicional é a possibilidade de se estabelecer as medidas protetivas de plano, antes de qualquer outro ato processual, visando garantir a segurança da mulher e o afastamento imediato do agressor. No quesito garantir a segurança à mulher, a Lei Nº 11.340/2006 também determinou ações policiais específicas, que visam auxiliar a vítima no rompimento do relacionamento, na busca dos seus pertences, dentre outras:

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável. (Brasil, 2006, grifos nossos).

Apesar de a Lei Maria da Penha ter sido estabelecida 18 anos após a igualdade de gênero constitucional, não podemos negar que esta legislação tratou a temática com mais seriedade, buscando a erradicação da violência entre os gêneros, após uma quebra de paradigma social e mudança de cultura. Essa mudança ocorreu com a participação das mídias, inclusive das teledramaturgias, que ampliaram as discussões sobre a violência, como destacado na sequência.

Influência exercida pela mídia televisiva na desconstrução do machismo e da violência doméstica

Partindo do pressuposto que a cultura não é uma construção fixa, mas que é resultado de uma construção histórica e social, que pode ser desconstruída e alterada, buscamos evidenciar um dos principais mecanismos utilizados para alteração do paradigma social, que outrora fora estabelecido na cultura brasileira. Assim, neste tópico refletimos sobre as mídias televisivas que tiveram papel fundamental na busca pela conscientização da população, uma vez que a audiência das teledramaturgias alcançou números vultuosos.

Importante mencionar que o esforço realizado pela mídia televisiva teve o escopo de conscientização, tanto no auxílio da luta aguerrida para efetivação da Lei Nº 13.340/06 (Lei Maria da Penha), como também para que as mulheres que estavam inseridas nesse contexto de violência, pudessem denunciar seus agressores e serem livres da prática desse crime.

A primeira novela que trouxe em seu enredo a violência doméstica intitulava-se “Mulheres Apaixonadas”, do autor Manoel Carlos, transmitida pela Rede Globo de Televisão em 2003, no qual a personagem Raquel (Helena Ranaldi) apanhava cotidianamente sem motivos justificáveis do seu então marido Marcos (Dan Stulbach). A trama envolvendo Raquel e Marcos não fazia parte do principal enredo da novela, mas teve uma grande repercussão, pois Raquel não “dava motivos” para a agressão. Desse modo, foi sendo discutido, por meio da novela, que existiam casos de agressões que não estavam fundamentados em atitudes “justificáveis”, cabendo a possibilidade da dúvida quando se tratava da defesa da mulher. Tal implantação parece ser tão ínfima, mas foi o início na quebra do paradigma de que a mulher que era vítima de violência doméstica era merecedora de tal violência, com base nos institutos do patriarcado e do machismo (Caminhas, 2020).

A segunda novela, que também foi transmitida pela Rede Globo de Televisão, entre os anos de 2004 e 2005, intitulava-se “Senhora do Destino”, do autor Aguinaldo Silva, a qual retratou o casamento de Cigano (Ronnie Marruda) com sua esposa Rita (Adriana Lessa). Nesta teledramaturgia, o agressor Cigano já era um criminoso e, ao sair em liberdade condicional, agredia a esposa por questões financeiras, visto que o mesmo não queria trabalhar, além dos ciúmes infundados. Essa novela foi responsável por contribuir para com a quebra do paradigma social brasileiro, ao retratar Cigano como um verdadeiro criminoso, não apenas pelos crimes em que foi condenado, mas também pelo crime de agressão em relação à sua esposa, vulgo violência doméstica. Mais uma vez a vítima toma coragem de denunciar o seu agressor, a fim de se livrar da prática deste crime (Caminhas, 2020).

O esforço das teledramaturgias em debater a violência doméstica não para por aí, visto que dentre os anos de 2000 a 2010, tanto a Rede Globo de Televisão quanto a Rede Record produziram 13 telenovelas que abordaram a temática, mesmo não sendo no enredo principal. Todo o esforço das mídias tinha como principal escopo o acompanhamento dos “debates e o desenvolvimento de legislações sobre agressões motivadas por gênero” (Caminhas, 2020: 425).

Apesar de todos os esforços realizados pelas mídias e teledramaturgias, a quebra de paradigma social é lenta e existem casos em que a violência doméstica ainda é normalizada. Prova disso é o estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), que evidenciou os altos índices de tolerância a agressão contra as mulheres. Nesse cenário, 58% dos entrevistados relataram que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”; 63 % informaram que os “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família”; e 82% concordaram com a frase “em briga de marido e mulher não se mete a colher” (Ipea, 2014). É possível notar que, embora se tratando de um problema social, a maioria das pessoas entende que a violência doméstica é de interesse privado e não público, quando na verdade a sociedade toda deve se preocupar e combater todas as formas de violência contra a mulher.

Após a constatação de que a violência doméstica não é de interesse privado, mas um problema de ordem pública, já que sua prática atinge várias esferas da sociedade brasileira, é possível afirmar que as mídias buscaram desconstruir mais este paradigma, ao estabelecer um padrão nas telenovelas em que todos os agressores possuem relação familiares ou afetivas com as vítimas. Além disso, as vítimas são consideradas vulneráveis e dependentes dos seus agressores, o que dificulta o rompimento do ciclo vicioso da agressão, que é formado por constantes brigas e reconciliações.

Outro ponto de que as telenovelas se valeram para ampliar a conscientização da população sobre a violência entre os gêneros foi apresentar vítimas que não faziam o papel de mocinha, ou seja, eram as vilãs que sofriam violências domésticas. Essa percepção dos autores foi de suma importância, para entender que o crime é a violência, independentemente da conduta da vítima. Em outras palavras, a violência não é resultado da conduta da vítima e sim da conduta indevida e criminosa do autor do crime.

Fica, portanto, evidenciado que as telenovelas auxiliaram e continuam corroborando com a quebra dos paradigmas sociais, estabelecendo novas perspectivas de reflexão e entendimento, pela sociedade brasileira. Prova disso é que, quando essas telenovelas são reprisadas, a sociedade já tem uma interpretação diferente da que a foi proposta na época (Caminhas, 2020), demonstrando que a cultura de fato foi modificada.

Machismo, violência doméstica e dignidade humana: o papel das mídias

Ao relacionar a questão do machismo, da violência doméstica e o papel das mídias no processo de garantir a dignidade humana, é importante considerar que o instituto do machismo é estrutural e atua, ao mesmo tempo, em larga escala e de forma microscópica (Ferreira, 2022), no sentido de atingir muitas mulheres brasileiras. No entanto, a naturalização deste comportamento, que por vezes é manifesto pelos homens e ratificado pelas mulheres, impede que as vítimas se sintam desrespeitadas e prejudicadas, por entenderem que este comportamento é adequado ao gênero masculino, com a justificativa de que “eles são assim”.

Desse modo, identificamos que o primeiro ponto que necessita ser desconstruído é a naturalização deste instituto, visto que esta naturalização tem o escopo de impedir a reorganização social, coagindo a mulher a permanecer subjugada ao homem. O machismo se vale dos ensinamentos embasados pela moral e pelos bons costumes e, por vezes, utiliza-se de piadas, chistes, falas preconceituosas para reafirmar esta superioridade (Ferreira, 2022).

A naturalização de comportamentos machistas acaba por evitar que as vítimas se sintam desrespeitadas e condenem tais práticas. Este instituto só é evidenciado em casos mais extremos, que levam a vítima à morte, e até mesmo nesses casos muitas pessoas não atribuem o homicídio à prática do machismo.

Em um estudo realizado por Gianvecchio (2022), foi observado que uma das mulheres entrevistadas relatou um caso de assédio sexual, mas quando foi indagada sobre o machismo ela respondeu que nunca foi vítima desse instituto. Mesmo o assédio sendo considerado um exemplo explícito da manifestação machista, a entrevistada não fez esse elo de ligação, evidenciando que a naturalização deste comportamento corrobora com sua manutenção. Ocorre que quando saímos da esfera social e passamos para análise legal deste instituto, entendemos que o machismo afronta todos os direitos constitucionais e infralegais que já foram estabelecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, visto que a mulher não está subjugada, ela possui os mesmos direitos que os homens, sendo vedado qualquer tipo descriminação ou de opressão.

Outro aspecto a considerar é que o Brasil é um país signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo sancionado a legislação internacional, além de ter sido favorável à promulgação do documento na Assembleia de 1948. Contudo, foi na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 40 anos após, que os direitos das mulheres foram garantidos. Apesar de os direitos femininos já serem uma realidade em outros países, para o ordenamento jurídico brasileiro eles foram considerados inovadores, pois instituíram homens e mulheres em condições de igualdade. No entanto, é o primeiro artigo da Constituição Federal, no inciso III, que avigora o Brasil como um país signatário: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana” (Brasil, 1988).

Evidencia-se que a dignidade humana é um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, que implica na igualdade entre homens e mulheres, tratando-se de um pilar que não pode ser ignorado “independentemente de raça, gênero, capacidade ou outras características individuais” (Andrade, 2003, p. 3). Outro pilar da dignidade humana é a liberdade, que deve ser entendida no seu conceito amplo, ao consentir às mulheres (objeto do nosso estudo) a prática dos seus direitos existenciais.

Cabe salientar que a cultura é indissociável da noção de dignidade humana, pois em cada país a cultura atribui significados diferentes à dignidade mínima da mulher. E apesar de a cultura diferenciar os significados da dignidade, ela não é capaz de “eliminar o caráter universal da ideia de respeito à dignidade humana ou da existência de um direito inato da pessoa de ser tratada dignamente” (Andrade, 2003: 7).

É salutar compreender que o ordenamento jurídico brasileiro garantiu à mulher a dignidade de pessoa humana, mas muitas vezes vemos as mulheres terem seus direitos desrespeitados devido à prática do machismo, que afronta o princípio constitucional, tanto no pilar da igualdade quanto no da liberdade e, assim, o machismo contribui para subjugar e controlar a mulher na sociedade brasileira.

Na tentativa de desconstruir os alicerces do machismo e trazer para o âmbito das práticas o direito que já está posto no ordenamento jurídico brasileiro, as mídias, por meio das telenovelas, exerceram um papel relevante para alteração da cultura, por demonstrar que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens e não precisam ser subjugadas ou controladas. A teledramaturgia brasileira corroborou, inclusive, com a tomada de consciência de que a violência doméstica é um problema social de ordem pública, retirando as decisões exclusivamente da ordem privada. As mídias também foram responsáveis por veicular propagandas com enredos que reforçavam: “em briga de marido e mulher, devemos meter a colher” (Caminhas, 2020).

Importante mencionar que as mídias não tiveram sua importância firmada apenas no passado, ao auxiliar na luta pela legislação específica da violência doméstica, Lei nº 13.340/2006. Atualmente a teledramaturgia continua contribuindo com a tomada de consciência de que a mulher é livre e que a violência doméstica é um crime que precisa ser combatido com todo o rigor da lei, visto que, socialmente, em pleno ano de 2024, não se aceita que mulheres sejam violentadas e até mesmo mortas por seus familiares ou companheiros.

Desse modo, entendemos que tanto socialmente, quanto juridicamente muitos avanços já foram estabelecidos por meio da participação das mídias. Entretanto, não podemos diminuir os esforços, haja vista que a mulher brasileira continua sendo vítima de violência doméstica, seja por medo, por dependência emocional e/ou financeira, por vergonha etc. Essa triste realidade precisa ser erradicada e as mídias podem e devem se comprometer com esse processo, a fim de que exista a equidade entre os gêneros.

Considerações finais

A partir da pesquisa bibliográfica realizada, percebemos que o patriarcado e o machismo validam a violência doméstica e atrapalham a superação desse problema. Contudo, existe um movimento social que tem buscado o enfrentamento desses sistemas, com o intuito de retirar a mulher da subalternidade e da dependência. E esse movimento social perpassa pelo âmbito jurídico, no intuito de conceder às mulheres a igualdade de oportunidade e de direitos. Quando analisamos a concessão legal versus a vivência dos direitos, percebemos que existe uma imensa lacuna, pois os direitos garantidos no ordenamento jurídico não acompanham a realidade vivenciada pela população feminina no Brasil.

Um forte aliado na luta das mulheres foram as mídias que, mediante a grande força e alcance da teledramaturgia brasileira, exerceram um papel importante na modificação da cultura que tinha por base o patriarcado e o machismo. As mídias inovaram ao promover discussões de temáticas inerentes ao papel da mulher na sociedade e à violência doméstica, e contribuíram com a luta por uma legislação específica e rigorosa, além de impulsionar a mulher a denunciar o seu agressor.

Por fim, compreendemos que um longo percurso já foi percorrido em prol da erradicação da violência doméstica, mas que muito ainda precisa ser feito, debatido, desconstruído e pesquisado, a fim de que a mulher não sofra nenhum tipo de violência. Para tanto, necessitamos que as mídias continuem exercendo o seu papel, por serem consideradas aliadas fundamentais no processo de conscientização da população no combate ao machismo e a violência doméstica na cultura brasileira.