Narrativas de professoras de escolas rurais e condições de trabalho: modos de viver e dizer Narratives of rural school teachers and working conditions: ways of living and saying

Elizeu Clementino de Souza ,
Gildison Alves de Souza 
y Michael Daian Pacheco Ramos 

https://doi.org/10.25965/trahs.2835

O artigo analisa condições de trabalho docente a partir das narrativas de professoras de escolas rurais do município de Capim Grosso (Bahia). Ancorados em princípios da abordagem (auto)biográfica, foram analisadas entrevistas narrativas com quatro colaboradoras na perspectiva interpretativa-compreensiva. As narrativas evidenciam que as colaboradoras ingressaram em escolas rurais com contratos temporários e sem formação específica, sendo indicadas por lideranças políticas e fazendeiros, alcançando mais tarde a formação em nível superior e a aprovação em concurso público. As professoras relataram dificuldades com a infraestrutura, como improvisação de sala de aula, cadeiras e mesas, além da ausência de materiais didáticos e serviços básicos como água e energia elétrica. Contudo, sinalizaram que houve melhorias com o tempo, mas reafirmaram condições precárias de trabalho.

Notre objectif est de présenter les conditions de travail des enseignants des écoles rurales, en nous appuyant sur les récits des quatre enseignantes de la municipalité de Capim Grosso, à Bahia. La recherche s’inscrit dans le cadre théorique de l’approche (auto)biographique. Les récits ont été recueillis au moyen d’entretiens narratifs et les analyses, réalisées dans une perspective d'interprétation-compréhension, montrent que ces enseignantes n’avaient pas de formation spécifique. Elles ont été embauchées sur des contrats temporaires et sur la recommandation de dirigeants politiques et d’agriculteurs. Elles ont poursuivi, plus tard, des études supérieures et réussi un concours public. Leurs récits font état des difficultés dues aux mauvaises conditions structurelles des établissements scolaires : salles de classe, et mobilier en mauvais état et, notamment absence de matériel pédagogique et de services tels que l’eau et l'électricité. Elles ont toutefois signalé qu’avec le temps, elles ont constaté des améliorations, mais la précarité des conditions de travail n’a pas changé.

El artículo analiza las condiciones de trabajo de la enseñanza a partir de las narrativas de los maestros de las escuelas rurales del municipio de Capim Grosso (Bahía). Ancladas en los principios del enfoque (auto)biográfico, las entrevistas narrativas con cuatro colaboradoras se analizaron desde una perspectiva interpretativa-comprensiva. Los relatos muestran que las colaboradoras entraron en las escuelas rurales con contratos temporales y sin formación específica, siendo indicadas por los dirigentes políticos y los agricultores, llegando más tarde a la formación en el nivel superior y a la aprobación en concurso público. Los profesores informaron dificultades con la infraestructura escolar en las aulas (escasez de sillas y mesas), además de la ausencia de material didáctico y de servicios básicos como el agua y la electricidad. Sin embargo, señalaron que había habido mejoras a lo largo del tiempo, pero reafirmaron las precarias condiciones de trabajo.

The article analyzes teaching working conditions based on the narratives of teachers from rural schools in the municipality of Capim Grosso-Bahia, Brazil. Anchored in principles of the (auto)biographical approach, narrative interviews with four collaborators were analyzed in an interpretive-comprehensive perspective. The narratives show that the collaborators entered rural schools with temporary contracts and without specific training, being indicated by political leaders and farmers, later reaching Higher Education and approval in public sector recruitment examination. The teachers reported difficulties with the infrastructure, such as classroom improvisation, chairs and tables, in addition to the absence of didactic materials and basic services such as water and electricity. However, they indicated that there have been improvements over time, but they reaffirmed precarious working conditions.

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I - Condições de trabalho e escola rural: diálogos (im)pertinentes

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realiza o Censo Demográfico Brasileiro, e o levantamento no ano de 2010 aponta que a população brasileira era de 190.755.799 habitantes, dos quais 160.925.791 (84,4%) se encontram no espaço urbano e 29.830.007 (15,6%) no rural (Ibge, 2010).

De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2019, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a localidade urbana concentra 69,6%; e a rural, 30,4% dos estabelecimentos de ensino da educação básica. Em relação às matrículas, existiam 47.874.246 alunos matriculados na educação básica, dos quais 42.545.428 (88,8%) se encontravam em escolas urbanas e 5.328.818 (11,2%) em unidades rurais (Inep, 2020).

O Censo Escolar apontou ainda que no Brasil há 2.212.018 de docentes, sendo 333.003 (15%) no espaço rural e 1.940.175 (85%) no urbano. Nesse ano, também foram registradas 2.169.089 turmas, sendo 1.850.980 (85,7%) localizadas em áreas urbanas e 309.109 (14,3%) em áreas rurais (Inep, 2020).

Dada a quantidade de escolas, matrículas, docentes e turmas, somada às baixas pesquisas (Santos, 2015) e o descaso com as escolas rurais (Souza et al 2017a, 2017b, 2018a, 2018), consideramos pertinente aprofundar as reflexões sobre as condições de trabalho que são desenvolvidas no contexto rural.

Com o intuito de visibilizar modos como as professoras vem desenvolvendo suas atividades em escolas rurais de classes multisseriadas, o artigo apresenta reflexões sobre condições de trabalho de professoras que atuam em escolas rurais do município de Capim Grosso-Bahia no que se refere ao vínculo funcional, formação profissional e condições físicas e materiais das escolas na perspectiva de contribuir com as discussões sobre multisseriação no Brasil.

A partir de uma investigação na literatura acadêmica (Bof, 2006; Inep, 2007; Secad, 2007; Taffarel; Santos Júnior; Escobar, 2010; Sousa, 2015; Bahia; 2017; Souza et al; 2017a; 2017b; 2018a; 2018b; Souza, 2020; Ramos, 2020), constatamos que alguns problemas são apontados como centrais na educação que ocorre em espaços rurais, em todas as regiões do país, são eles: a insuficiência e a precariedade das instalações físicas da maioria das escolas; as dificuldades de transporte e acesso dos professores e alunos às escolas; a falta de professores habilitados e efetivados; currículo escolar que privilegia uma visão urbana de educação e desenvolvimento; a ausência de assistência pedagógica e supervisão escolar nas escolas rurais; a falta de atualização das propostas pedagógicas das escolas rurais; o baixo desempenho escolar dos alunos e elevadas taxas de distorção idade-série; os baixos salários e sobrecarga de trabalho dos professores acumulando diversas funções; a política de fechamento das escolas rurais através da nucleação; a implementação de calendário escolar adequado às necessidades do contexto rural, as interferências dos grupos que possuem poder político local na contratação dos professores e os altos índices de rotatividade docente.

Note de bas de page 1 :

O projeto “Multisseriação e trabalho docente: diferenças, cotidiano escolar e ritos de passagem” contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), no âmbito do Edital nº 028/2012 – Prática Pedagógicas Inovadoras em Escolas Públicas e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no âmbito da Chamada Universal nº 14/2014 e, atualmente, conta com financiamento do MCTI/CNPq, Edital nº 28/2018, processo nº 423515/2018-7, sendo desenvolvido e coordenado pelo Grupo de Pesquisa (Auto)biografa, Formação e História Oral (GRAFHO) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), sob supervisão do professor Elizeu Clementino de Souza, da UNEB. Com o intuito de refletir acerca do cotidiano escolar e as condições de trabalho dos professores em classes multisseriadas e escolas rurais e urbanas que acolhem egressos de escolas rurais, tal projeto vem alcançado destaque ao realizar ações de inovação de práticas educacionais, como publicações de roteiros didáticos e cadernos temáticos de forma colaborativa entre professores da educação básica, de universidades, pesquisadores e estudantes de diferentes níveis de ensino (educação básica, graduação, pós-graduação).

Note de bas de page 2 :

O projeto As políticas de educação e a reestruturação da profissão docente confrontadas aos desafios da globalização” contou com financiamento da Fapesb, no âmbito do Edital nº 004/2015 – Cooperação Internacional. Desenvolvido em regime de cooperação entre o GRAFHO da UNEB, o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Grupo de Pesquisa Gestão, Currículo, Políticas Educativas e Trabalho Docente da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o Laboratório de Pesquisa Sociedades, Atores e Governo (Sage) da Universidade de Strasbourg-França, o Grupo Políticas de Educação e Formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, o Grupo de Investigação HUM, da Universidad de Málaga-Espanha, Grupo de Investigação Trabajo, Subjetividad y Articulación Social (Trasas), da Pontifícia Universidad Católica de Valparaíso-Chile Grupo de Pesquisa sobre Política Educativa (GPPE), da Faculdad de Filosofia y Letras da Universidad de Buenos Aires.

Observamos essas questões no âmbito das pesquisas “Multisseriação e trabalho docente: diferenças, cotidiano escolar e rito de passagem”1 e “As políticas de educação e a reestruturação da profissão docente confrontadas aos desafios da globalização”2, ambas vinculadas ao Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Note de bas de page 3 :

Referimo-nos as seguintes pesquisas desenvolvidas no âmbito do GRAFHO: Souza (2015); Santos (2015); Meireles (2019); Lima (2019); Ramos (2020); e Souza (2020).

Estudos diversos3 foram desenvolvidos como ações de tais projetos, em diferentes municípios de Territórios de Identidade da Bahia, com professores que vivem cotidianamente as condições de trabalho nas escolas rurais. Essas investigações levam-nos ao entendimento do quanto é fundamental uma escuta sensível e atenta às especificidades e singularidades dos processos educativos nessas localidades.

As discussões sobre condições de trabalho ancoram-se nos estudos de Oliveira e Assunção (2010), Hypólito (2012) e Vieira e Oliveira (2013), tendo em vista que possibilitam aprofundar as reflexões sobre modos como os professores de classes multisseriadas do município de Capim Grosso (Bahia) vivenciam as condições de trabalho. Para Oliveira e Vieira (2013), as condições de trabalho docente são designadas por um conjunto de recursos que tornam viáveis a execução do trabalho e que envolve fatores que vão desde as instalações físicas e os materiais disponibilizados aos docentes até as formas de contratação, salário e estabilidade. Ampliando as discussões sobre a temática, Oliveira e Assunção (2010) sinalizam que:

[...] as condições de trabalho não se restringem ao plano do posto ou local de trabalho ou à realização em si do processo de trabalho, ou seja, o processo que transforma insumos e matérias-primas em produtos, mas diz respeito também às relações de emprego. As condições de trabalho se referem a um conjunto que inclui relações, as quais dizem respeito ao processo de trabalho e às condições de emprego (formas de contratação, remuneração, carreira e estabilidade) (Oliveira; Assunção, 2010: 1).

Ao teorizarem sobre condições de trabalho, as autoras destacam contribuições férteis para a discussão, quando nos chama a atenção para as modificações do trabalho docente nas últimas décadas, acarretando uma ampliação de tarefas, de novas funções e de responsabilidades aos docentes; uma ampliação da jornada de trabalho real sem o reconhecimento formal e sem a devida retribuição; um aumento da intensificação e da autointensificação do trabalho docente; e emergência de uma nova divisão técnica do trabalho na escola, com novas funções e personagens docentes. Ainda sobre essa discussão, Hypólito (2012) nos alerta que as condições de trabalho têm sido negligenciadas a ponto de aprofundar a precarização e intensificação do trabalho dos professores.

Importante notar que no Brasil há diferentes instrumentos legais que subsidiam a proposição e regulação de políticas públicas dos sistemas educacionais e as condições de trabalho dos professores, destacamos especialmente a Constituição Federal (Brasil, 1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Brasil, 1996) e o Plano Nacional de Educação (PNE) (Brasil, 2014).

Ao analisar as condições de trabalho de professoras de classes multisseriadas, este texto se organiza a partir de três eixos temáticos. O primeiro, denominado “Condições de trabalho e escolas rurais: diálogos pertinentes”, sistematiza aspectos teóricos, dialogando com pesquisadores que abordam sobre as condições de trabalho nas escolas rurais. O segundo, intitulado “Aspectos metodológicos: contexto da pesquisa, dispositivo e perfil das colaboradoras” apresenta o cenário da pesquisa, as opções teórico-metodológicas, a perspectiva de análise e o perfil das colaboradoras. No último eixo, “Diálogos sobre as condições de trabalho em escolas rurais: com a palavra, as professoras”, apresentamos as narrativas das professoras entrecruzando com as disposições sobre as condições de trabalho. Por fim, sistematizamos nas “Considerações finais”, reflexões sobre o modo como cada docente vivencia as condições de trabalho, destacando o compromisso, a dedicação, as formas de superação e as inquietações face às adversidades enfrentadas no desenvolvimento da docência em contexto rural.

II - Aspectos metodológicos: contexto da pesquisa, dispositivo e perfil das colaboradoras

O município de Capim Grosso, situado na região centro-norte do estado da Bahia, tem uma área de 350,032 km² com cerca de 30.662 habitantes. Estima-se que 18% de sua população vivem em contexto rural (Ibge, 2019).

De acordo com o Censo da Educação Básica de 2019 (Inep, 2020), Capim Grosso possui 918 estudantes matriculados em 14 escolas rurais. O mesmo Censo ainda informa que há 44 professores e 45 turmas localizadas nas escolas rurais. Ademais, indica que no município existem 27 turmas multisseriadas que são ofertadas no ensino fundamental.

Optamos pelo método (auto)biográfico (Souza, 2014) através da realização das entrevistas narrativas (Jovchelovitc & Bauer, 2010) com quatro docentes colaboradoras. Para a análise das narrativas, optamos pela análise interpretativa-compreensiva a partir do estudo de Souza (2006; 2014).

Utilizamos a entrevista narrativa com o intuito de recolher as narrativas das professoras, perspectivando acessar às memórias e questões relacionadas às suas condições de trabalho. Considerando a aproximação com o campo de estudo, foram realizadas, antes das entrevistas, visitas às escolas onde as professoras vivem e desenvolvem seu trabalho com a intenção de conhecer as condições materiais e a forma como a docência se efetiva no contexto das escolas rurais.

Na condução do processo da entrevista narrativa, seguimos assim: a) preparamos e exploramos o campo de trabalho formulando questões importantes sobre a temática do estudo; b) formulamos o tópico inicial para narração e iniciamos a gravação; c) no momento da narração central, evitamos interrupções nas narrativas das professoras, apenas encorajando-as não verbalmente para continuar a narração; d) após o final das narrativas, apresentamos questionamentos do tipo: “que aconteceu?” em algumas situações; e e) por fim, na fase conclusiva, paramos de gravar e realizamos anotações gerais (Jovchelovitch & Bauer, 2010).

Na dinâmica da análise das narrativas, adotamos os tempos interpretativos, conforme apresentado por Souza (2014): tempo I, denominado de pré-análise/leitura cruzada; tempo II leitura temática – unidade de análise descritiva; e tempo III leitura interpretativa-compreensiva do corpus (Souza, 2014).

Ao abordar sobre os tempos de análise, Souza (2014) nos diz que o tempo I – pré-análise/leitura cruzada – se dá mediante compreensão de que a análise se inicia na escuta, na transcrição. Portanto, conforme sugere o autor, realizamos também um diário de campo. No momento da transcrição, destacamos marcas singulares, regularidades e irregularidades que abordaremos no próximo tópico. No tempo II, houve o momento da leitura temática ou unidades de análise temática/descritiva, tratamos de construir um perfil biográfico das colaboradoras da pesquisa (Tabela 1) e organizamos as unidades de temática, tendo em vista a análise interpretativa-compreensiva. No tempo III, exige leituras e releituras individuais e em seu conjunto do corpus das narrativas, recorrendo aos agrupamentos das unidades de análise temática e/ou das fontes utilizadas. É um momento fundante, no qual se alarga a compreensão sobre o dito e até mesmo o não dito (Souza, 2014).

A Tabela 1 apresenta um breve perfil sobre as colaboradoras, a partir da qual seguiremos com caracterização e breve descrição das colaboradoras, destacando nascimento, idade, formação e atuação em escolas rurais.

Tabela 1 - Perfil biográfico das professoras das escolas rurais

Note de bas de page 4 :

O nome das professoras não foi ocultado ou trocado por pseudônimos por opção delas, as quais assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), concordando e recomendando a utilização de seus nomes verdadeiros, por reconhecerem a importância que têm para o município e as comunidades onde trabalham.

Nome4

Idade

Formação

Tempo de docência

Escola onde atua/atuou

Maria Trindade dos Santos

68

Graduada em Pedagogia. Especialista em Gestão Escolar

50 anos

Escola Rui Barbosa

Luísa Oliveira Gonçalves

46

Graduada em Pedagogia.

Especialista em Gestão Escolar

29 anos

Escola Rui Barbosa

Edinalva Soares Carneiro

59

Graduada em Pedagogia. Especialista em Gestão Escolar

45 anos

Escola Justiniano Pinto

Alzira Carneiro

83

Magistério

67 anos

Escola Justiniano Pinto

Fonte: Souza (2020)

Dona Maria Trindade dos Santos, 68 anos, nasceu em 8 de junho de 1952. Graduou-se em Pedagogia e se especializou em Gestão Escolar. Dedicou 50 anos de sua vida à educação das crianças residentes nas imediações da fazenda Junquinho, em Capim Grosso (Bahia), lugar onde fundou a Escola Rui Barbosa e que atuou como professora de seus filhos, filhas, netos e netas. Atualmente, a escola funciona no mesmo local de sua fundação, que se localiza a 18 km da sede do município de Capim Grosso.

A professora Luísa Oliveira Gonçalves, 46 anos, nasceu em 25 de março de 1974. Graduada em Pedagogia e especialista em Gestão Escolar. Atualmente, trabalha na Escola Rui Barbosa e exerce a profissão desde os 17 anos, sempre em escolas rurais, acumulando 29 anos de experiência profissional. Luísa iniciou sua carreira em uma escola construída pelo seu pai na fazenda Várzea Dantas, no município de Capim Grosso, onde ela ainda mora. Posteriormente, trabalhou em outras escolas rurais de Capim Grosso, indo para a Escola Rui Barbosa no ano de 2017.

Graduada em Pedagogia e especialista em Gestão Escolar, a professora Edinalva Soares Carneiro, nascida em 1961, tem 59 anos de idade. Começou a atuar como professora aos 14 anos dedicando, portanto, 45 anos de sua vida à carreira docente, tendo trabalhado sempre em escolas rurais de Capim Grosso. Atualmente, exerce sua profissão na Escola Justiniano Pinto.

A escola Justiniano foi fundada pela mãe da professora Edinalva, Dona Alzira Carneiro, uma senhora de 83 anos, nascida em 1937. Em toda a sua narrativa, demostrou amor pela profissão que escolheu, esse sentimento é representado pela dedicação de 67 anos à profissão. Com formação em Magistério, revela-se engajada na carreira docente na comunidade rural do Lajedo em Capim Grosso desde 1974; contudo, antes de começar a dar aulas para as pessoas do Lajedo na sala de sua casa, com a ajuda de sua filha, ela já havia iniciado sua história como professora alfabetizando o seu marido aos 16 anos.

Considerando as biografias apresentadas, compreendemos que as colaboradoras possuem largas experiências em escolas rurais, dedicando um tempo significativo de suas vidas para a docência nas comunidades rurais, em sua maioria, a mesma comunidade em que residem. Outra informação importante que emerge das biografias é a especificidade dos estabelecimentos de ensino em contextos rurais, pois algumas escolas foram fundadas e tiveram seu espaço físico alocado nas residências e propriedades dos docentes, revelando um contexto histórico de precariedade da infraestrutura dos prédios escolares; contudo, com o tempo, foi se ampliando e melhorando as condições estruturais.

III - Diálogos sobre as condições de trabalho em escolas rurais: com a palavra, as professoras

Após apresentarmos um breve perfil biográfico das colaboradoras, destacamos que, na análise compreensiva-interpretativa, emergiram alguns aspectos que interferem nas condições de trabalho, são eles: vínculo funcional, formação e infraestrutura das escolas.

Um aspecto que constitui fortemente as condições de trabalho e que interfere diretamente em sua dinâmica é o vínculo funcional, ou seja, o tipo de contrato de trabalho (Oliveira; Assunção, 2010). Conforme preconiza os dispositivos legais (Brasil, 1988; Brasil, 1996; Brasil, 2014), as contratações dos professores da rede pública devem ocorrer por meio de concurso e provas de título, porém, no âmbito da educação em espaços rurais, grande parte dos contratos de trabalho são realizados de forma temporária (Inep, 2020), o que seguramente, interfere de forma negativa nas condições de trabalho dos professores.

Algo comum na realidade das escolas rurais é o fato da maioria dos profissionais que atua não ser efetiva e por possuir contratos temporários. Dessa forma, o quadro dos profissionais da educação é bastante rotativo, prejudicando os processos de formação continuada, a construção da identidade com a escola, a formação nela desenvolvida e ausência de direitos trabalhistas, férias, décimo terceiro, descanso remunerado, aposentadoria etc.

Na Bahia, 26% dos docentes da rede pública são contratados temporariamente, esse quantitativo representa cerca de 35 mil professores que não possuem o vínculo funcional efetivo ou estável (Inep, 2020). Em Capim Grosso, 28% dos professores da rede pública possuem contratos temporários equivalendo a 87 docentes, contrariando, assim, o que reza a Constituição Federal (Brasil, 1988), a LDB (Brasil, 1996) e o PNE (Brasil, 2014).

Essa realidade expressiva de docentes com vínculos temporários também foi observada na pesquisa de Oliveira e Vieira (2010), na qual um terço (32%) dos 8.795 docentes não prestaram concurso público para trabalhar na rede em que foram entrevistados. No trabalho de Ramos (2020), 15% dos 264 professores de escolas rurais do Território de Identidade do Piemonte da Diamantina (Bahia) possuíam contratos temporários.

Cenário ainda mais preocupante foi observado por Sousa (2015), no qual 40% dos 118 professores de classes multisseriadas do Território do Baixo Sul Baiano obtinham contratos de trabalhos temporários. Esse contexto determina uma situação em que os “‘professores temporários’ vem se tornando ‘passageiros permanentes’” (Seki, et al. 2017), principalmente em escolas rurais do Brasil.

Note de bas de page 5 :

São aqueles profissionais que exercem o magistério sem possuir a habilitação mínima exigida, ou seja, são pessoas que lecionam sem ter concluído o curso que as habilitam ao exercício do magistério no nível de ensino em que atuam. Historicamente, no Brasil, os professores não habilitados lecionam em escolas localizadas em regiões de mais difícil acesso, em contextos geográficos do país nos quais não existem instituições de ensino superior que possam frequentar (Therrien & Damasceno, 1993).

As narrativas das professoras revelam que a entrada da profissão se efetiva nas décadas de 1980 e 1990, realizada por meio de convite de lideranças políticas e fazendeiros, sem a preocupação por parte do poder público em relação à formação. Todas as colaboradoras informaram em suas narrativas que iniciaram como professoras leigas5 possuindo contratos temporários e depois de um tempo foram aprovadas em concurso. Esse cenário é evidenciado nas narrativas da professora Trindade e Luíza.

Em sua juventude, após um período vivendo na comunidade do Peixe, em Capim Grosso, Dona Trindade foi morar e estudar em Jacobina, cidade que fica a cerca de 65 km de Capim Grosso. Nesse mesmo período, o padrinho dela, que era vereador, conseguiu um trabalho para ela em uma escola em Cachoeira Grande, pequeno povoado localizado há pouco mais de 25 km da cidade de Jacobina, onde ela começou a dar aulas. Além das inúmeras dificuldades em se manter atuando como docente, Dona Trindade se encontra entre as muitas professoras do Brasil que, no início de sua carreira, não foram contratadas por meio de concurso. Ela foi aprovada num concurso realizado no município já depois dos anos 2000.

A transição do vínculo temporário para o efetivo acompanha um sentimento de segurança e estabilidade diante das possíveis mudanças promovidas pelas lideranças políticas da região. Observamos esse aspecto quando Dona Trindade narra, com orgulho, sua aprovação, dizendo que o número de vagas ofertado era para “200 pessoas” e menciona com ar de desabafo: “eu fiquei no 70! E ele [o prefeito da época] não tinha como me tirar de lá e me jogar pra baixo” (Prof.ª Trindade – entrevista narrativa, 2019).

A oportunidade que Luísa teve de iniciar sua carreira docente ocorreu pelo fato de que, com o passar do tempo, o número de moradores da comunidade onde Luísa ainda vive e que de acordo com ela, eram majoritariamente analfabetos, cresceu. Por conta disso, foi percebido que existia a necessidade de ofertar educação nas mediações da comunidade, considerando-se que as poucas pessoas que estudavam tinham que se deslocar por longas distâncias, o que inviabilizava a continuação dos estudos e aumentava o abandono e a evasão escolar.

A professora Luísa conta que fez seu primeiro concurso em 1995, quatro anos após iniciar sua carreira docente, mas, não pôde assumir o cargo como concursada por ter, na época, concluído somente a 8ª série do ensino fundamental. Já nos anos 2000, Luísa havia concluído o antigo magistério, então surgiu a oportunidade de fazer um outro concurso em Capim Grosso.

Me apaixonei tanto por educação e quando eu fiz o 1° concurso em 1995, eu só tinha 8ᵃ série, então eu tinha voltado a estudar, mas não tinha ainda o magistério. Aí no ano 2000 o município proporcionou um concurso público e aí eu tive curiosidade; ‘Vou fazer agora que eu já tenho magistério, vou fazer o concurso’. Aí eu fiz e fui aprovada mais uma vez, aí eu me tornei professora de 40 horas. E continuei trabalhando nas escolas do campo, comunidades distantes, mas nas escolas do campo (Prof.ª Luísa - entrevista narrativa, 2019).

Um aspecto comum na história de vida das professoras entrevistadas é que antes de serem professoras concursadas na rede municipal de Capim Grosso, já tinham experiências como professoras leigas em escolas rurais, seja no próprio município ou em outra rede municipal, com contratos temporários, geralmente, sob indicação de uma pessoa politicamente influente na região. Portanto, o concurso propiciou para essas professoras a permanência da docência em escolas rurais mantendo o vínculo, as relações, a identidade e o conhecimento da comunidade escolar, assim como a garantia de estabilidade, segurança e os direitos historicamente conquistados pela categoria.

Outro aspecto importante que se relaciona com as condições de trabalho é a formação dos professores. Compreendemos que a formação docente corresponde ao processo de qualificar o professor em relação ao domínio dos conhecimentos e habilidades fundamentais para o exercício da profissão, elevando o nível de qualificação abrangendo a formação inicial – que possibilita ao docente obter condições legais para atuar na profissão – e a formação continuada – permite aos professores ampliar e aprofundar o trabalho que desenvolve (Camargo; Ferreira & Luz, 2012).

A LDB (Brasil, 1996) exige a formação de nível superior dos docentes da educação básica, salvo exceção em destaque no Artigo 62 que admite formação em nível médio, na modalidade normal para atuar na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Ademais, o PNE (Brasil, 2014) apresenta metas (15 e 16) objetivando que todos os professores da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento que atuam, bem como básica até o ano de 2024.

Souza e Gouveia (2011) revelam que ao longo da década de 1997-2007 houve uma redução do percentual de professores com formação em até o nível médio e um aumento dos percentuais de professores com nível superior. Essa tendência também é constatada no Relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2014 (Dieese, 2014). Cabe observar também o Documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (Matijascic, 2017), quando alerta sobre a dificuldade de elevar a escolaridade dos docentes das escolas rurais, ao afirmar que:

Para as escolas rurais, a situação é mais difícil, pois as condições para a contratação e a permanência do docente na área exigem a adoção de medidas de exceção, como relaxar certas exigências de formação. Sem tais medidas, pode ser inviável manter escolas para essas populações, ainda que isso seja um problema para eliminar as fortes desigualdades entre escolas urbanas e rurais (Matijascic, 2017: 26).

Ao abordar sobre a escolaridade dos professores das escolas rurais, o autor nos chama atenção para as dificuldades encontradas tanto na contratação, quanto na permanência desses docentes em contextos rurais, acarretando flexibilização nas exigências de formação desses profissionais. Essa problemática revela um descaso histórico com a política educacional de formação de professores para atuarem em contextos rurais.

Um problema histórico apontado no documento Panorama da Educação do Campo (Inep, 2007) e que parece ser superado a partir dos dados apresentados nos estudos (Sousa, 2015; Souza et al, 2017a; 2017b; Sousa, 2020; Ramos, 2020) é que geralmente aqueles professores com uma escolaridade inadequada permaneciam em escolas rurais isoladas e multisseriadas até o momento em que adquiriam maior escolaridade quando pediam remoção para a cidade.

Em Capim Grosso, as professoras que atuam nas escolas rurais narram a importância da formação – inicial e continuada – para a melhoria de sua atuação profissional, mas devido às dificuldades pessoais da época e a pouca oferta de ensino superior na região, iniciaram a docência sem formação específica e com o passar do tempo foram participando de formações.

Residindo distante do perímetro urbano de Capim Grosso, a professora Luísa continuou investindo na sua formação; contudo, nessa trajetória, houve momentos que foi preciso interromper o processo formativo, conforme nos relata no excerto abaixo:

Aí eu voltei a estudar em 1995, eu voltei e fiz 2 anos do magistério, parei 1 ano que eu fiquei grávida do meu segundo filho, parei em 1996. 1997, eu retornei e concluí o magistério. Aí naquela época se falava ‘professora formada’, né? Mas aí não foi o suficiente pra mim, eu achei que estava pouco ainda para desenvolver um trabalho com maior qualidade e também com segurança do que eu fazia, né? Porque... na verdade quando você vai pra faculdade você vai trazer um respaldo seguro do que você tá fazendo, tem coisas que você conhece, mas tem coisas que você já faz na prática, mas você não tem um... um respaldo científico. E aí eu voltei pra faculdade em dois mil e... 2004. Voltei pra faculdade, fiz a parte científica, vamos dizer assim, né? Essa questão de você tá fazendo num espaço que... a leitura de estudiosos que vai estar te dando um melhor... melhor respaldo (Prof.ª Luísa - Entrevista Narrativa, 2019).

A professora Trindade iniciou sua carreira docente ainda muito jovem e conseguiu concluir sua graduação aos 60 anos de vida e na oportunidade já acumulava 40 anos de docência. Nos narrou com orgulho: “Graduei e pós-graduei, fiz a minha pós-graduação”. (Prof.ª Trindade – entrevista narrativa, 2019).

Em sua narrativa, Dona Alzira também fala com muito orgulho dos seus certificados. Ao ver o seu entusiasmo ao relatar o número de diplomas que possui, se percebe a importância dessas formações para a autoestima da docente.

Eu tenho 18 diplomas de cursos de alfabetização. E me formei em Quixabeira, naquele curso do Proleigo. Concluí o magistério, né? Eu já tinha 65 anos, quando concluí. E assim por diante. Depois disso tudo, ainda ensinei 21 anos naquele prédio. Eu dei aula 37 anos. Tem se muito, mais ou menos uns 7 anos que eu saí porque agora eu tenho 82, né? Mais ou menos, 3 mais... isso aí, uns 7 anos que eu saí, 7 a 8 (Prof.ª Alzira - Entrevista Narrativa, 2019).

Para concluir o magistério, no ano de 1995, a professora Edinalva nos relatou que viajava de sua comunidade (Lajedo) para a sede do município de Capim Grosso, contudo nos diz: “Concluí mas fiquei com vontade de continuar né, porque o conhecimento nunca... a gente nunca abrange todo, né?” (Prof.ª Edinalva – entrevista narrativa, 2019).

Nesse sentido, decidiu fazer uma graduação em uma faculdade privada em Capim Grosso. Entretanto, adiou esse sonho para que sua filha pudesse seguir estudando:

E surgiu a faculdade de Capim Grosso. Fiz a... passei na faculdade e continuei estudando. Mas minha filha também já era época de fazer faculdade, e essa era particular, né? Aí pesou no meu bolso. Duas pra pagar, né? Aí eu fiquei pagando a faculdade pra mim e minha filha, aí no primeiro semestre eu não aguentei... eu disse é... fiz uma bobeira na época, mas fiz, né? Eu disse, eu prefiro minha filha que ela tá jovem, eu já estou já... minha carreira já tá... eu vou deixar ela estudando e eu vou parar. Aí parei de estudar e minha filha ficou estudando, né? Depois me arrependi, porque minha filha tinha mais chance na frente, e pra mim depois fiquei prejudicada. Então... deixei ela estudar (Prof.ª Edinalva - Entrevista Narrativa, 2019).

Então, por uma iniciativa da UNEB em criar um projeto pioneiro e extremamente importante para a formação docente no interior do estado, Edinalva, pode finalmente concluir seu tão sonhado curso de graduação, como ela mesmo explica a seguir:

Depois fiquei assim, com aquela vontade de estudar, mas surgiu o... a UNEB 2000. Aí quando surgiu... aí foi feito seleção, né? alguns professores foram selecionados outros não conseguiram. Então graças a Deus que eu fui uma das selecionadas, né? Aí concluí o magistério através da UNEB no 2000, que no final já não foi mais UNEB 2000 [...] começamos no UNEB 2000 e terminamos com o Parfor. E então depois desse programa eu fiz é, pós-graduação em gestão escolar (Prof.ª. Edinalva - entrevista narrativa, 2019).

As narrativas apresentadas pelas professoras evidenciam um esforço individual na busca pela qualificação profissional. Demarca também que após o término dos processos formativos as professoras continuaram exercendo suas atividades nas mesmas comunidades rurais, contribuindo dessa maneira para qualidade educacional da região.

A infraestrutura das escolas é outro aspecto que interfere nas condições de trabalho dos professores. Particularmente nas escolas rurais, os estudos (Inep, 2007; Bahia, 2017; Pacheco, Pereira, Oliveira, 2018; Ramos, 2020) evidenciam uma desvantagem em relação às escolas urbanas e uma precariedade na disposição da infraestrutura, revelando que em algumas escolas não há salas de direção e professores, secretaria, laboratórios, refeitórios, banheiros, cozinha e outras dependências.

De acordo com as entrevistas narrativas, observamos que as professoras narram dificuldades enfrentadas no começo de suas carreiras em relação às condições materiais das escolas, levando-as a improvisar sala de aula, mobiliário básico, mesas e cadeiras para o desenvolvimento do trabalho. Outro elemento que aparece com frequência nas narrativas das docentes era a ausência de material didático e o acúmulo de múltiplas funções no espaço escolar. As narrativas das colaboradoras evidenciam esses elementos.

O primeiro local onde Dona Trindade lecionou foi uma cabana feita de palha, tentando conter a emoção que a lembrança lhe causa, ela conta:

Ensinava numa casa coberta de palha, era palha, era um rancho de palha, entrei, entrei pra lá ensinava e quando chovia não tinha quem ficasse porque era muita chuva, as cadeiras não tinha cadeira era uns bancos que a gente sentava nos bancos, depois ele fez aquele depósito e eu vim pra o depósito, com cem alunos de novo (Prof.ª Trindade - entrevista narrativa, 2019).

Conforme narrativa da professora Trindade, essa escola “coberta de palha”, onde as aulas aconteciam não tinha água encanada, não tinha luz elétrica, não tinha cadeiras para as crianças nem para a professora sentar e o chão não tinha piso, era terra batida.

Água que nós não tínhamos aqui, não tinha cisterna, era na fonte. A salvação, porque a gente é pobre mas não tanto porque a gente tinha uma carroça, tinha uma dorna, tinha um burro que pegava o burro botava na carroça e enchia a dorna de água, fazia merenda, colocava a água ne pote que não tinha filtro... rapaz, tudo isso é uma história, tudo isso é uma história e aí venci, hoje é duas, tem duas meninas que tomam conta, na hora do recreio elas distribuem a merenda, as crianças vão brincar, a limpeza é toda delas, que era eu que limpava tudo e hoje a gente tem duas aqui, com 4 banheiros, que nem banheiro a gente tinha. Não mudou muito? Mudou. Mudou muito (Prof.ª Trindade - entrevista narrativa, 2019).

Luísa, por sua vez, sinaliza as dificuldades enfrentadas no início da docência como: sala de aula pequena para um número grande de alunos, a falta de um pessoal de apoio, ausência de equipamentos e materiais didáticos. Contudo, reconhece que houve melhorias na infraestrutura.

As condições de trabalho eram bem precárias, porque quando eu comecei, eu já cheguei a trabalhar com 42 alunos, então era um espaço pequeno, com muitas crianças, né? E... não tinha, isso... não tinha uma pessoa de apoio[...]. Então, as crianças tinham mais vontade, mas era difícil a questão de espaço, não dava materiais suficiente, você não tinha recurso, né? Não tinha um mimeógrafo. O quadro era 1 metro por 80 centímetros, pequenininho, então isso mudou bastante e hoje a gente tem uma escola estruturada, tem retroprojetor, a gente tem máquina de xerox. A gente tem aparelho de DVD, a gente tem lousa com piloto que era giz branco, é... transporte escolar, que as crianças vinham distante, vinham a pé, tudo isso dava aquele cansa... já chegava cansado, então mudou bastante. Eu já trabalhei em escola que eu ficava a 11 quilômetros de minha casa e eles não me dava, não me deu transporte. Hoje eu venho no transporte escolar. Então, mudou, e mudou muito e pra melhor com relação a essa questão de material, de recursos, melhorou bastante nesse sentido (Prof.ª Luísa - entrevista narrativa, 2019).

Da mesma forma que a professora Trindade, Luísa menciona também que exercia diversas funções no ambiente escolar, exercendo, muitas vezes atividades que não se inscrevem no campo da docência, mas como necessários para o funcionamento da escola, ao afirmar que:

Eu fazia a limpeza do espaço e fazia a merenda também. Então, eles sempre entre... quando... quando eu comecei... desde que eu comecei a trabalhar é, sempre eles entregavam a merenda escolar, ou seja graças a Deus, sempre entregavam. Mas quem fazia a merenda era eu, então só começou a ter, as pessoas que fazem... a merendeira, vamos dizer assim, depois que mudou pra.... pra escola. Quando era na minha casa, eles não... mesmo sendo um espaço que não era dentro de casa, não tinha merendeira. Eu que fazia a limpeza e fazia a merenda. Mas naquela época as crianças eram... a gente acaba pedindo a um, né? ‘Vai aqui...’ né? Ou ajudava ali..., Mas a responsabilidade era minha, de fazer esse trabalho, né? (Prof.ª Luísa - entrevista narrativa, 2019).

Devido à ausência de água na escola em que trabalhava, a professora Alzira nos relata dificuldades de conseguir água para a escola.

Eu pegava lenha, eu pegava água na cabeça, nuns tanques mais longe pra beber, e lenha e fazia a merenda escolar, e era zeladora da casa... e era aqui na minha casa [...] Eu dava aula dentro de casa, quando era lá... estava desocupada lavava tudo, lavava as coisas tudo, os meninos faziam [...] sentava na barra do forno, na mesa que eu dava aula né? Foi 16 com anos (Prof.ª Alzira - entrevista narrativa, 2019).

A escola Divino Mestre, como foi batizada por Dona Alzira, funcionava na sala de sua casa, lugar onde ocorreu a entrevista narrativa. A merenda era preparada em fogão de lenha e Dona Alzira buscava água caminhando por longas distância, intercalando o seu trabalho na casa de farinha próxima de sua casa com o de professora, zeladora, merendeira, além de trabalhar com seus alunos atarefando mandioca, tudo isso foi relatado sem que o sorriso dessa professora saísse de seu rosto.

A professora Edinalva nos relatou que devido à inexistência de um estabelecimento de ensino com sede própria, as aulas aconteciam na sala da casa de sua mãe, na casa de farinha ou sob a sombra de uma árvore. Se tratando de materiais escolares, Não tinha transporte para as crianças, não tinha sala de aula, não tinha às vezes nem giz pra se trabalhar, era muito difícil.” (Prof.ª Edinalva - entrevista narrativa, 2019).

Com base nas narrativas sobre as condições materiais das escolas, percebemos que o início das atividades docentes foi marcado em um contexto de muita precariedade na infraestrutura escolar; contudo, com o passar do tempo, houve mudanças, ampliações e aquisição de diversos aspectos relacionados com os equipamentos e infraestrutura das escolas rurais.

Considerações finais

As reflexões sistematizadas no texto evidenciam que no município de Capim Grosso as escolas rurais são uma realidade expressiva e demanda atenção por parte das políticas públicas educacionais. As narrativas desvelam problemas concretos do cotidiano escolar relacionado às condições de trabalho docente, ao tempo que demarca o compromisso e a dedicação das professoras face às adversidades vividas no desenvolvimento do exercício profissional.

Com base nas narrativas das professoras, compreendemos que o vínculo funcional é um elemento fundamental na constituição da identidade, na melhoria da formação e na garantia dos direitos trabalhistas.

Em síntese, destacamos que as condições de trabalho, das professoras de classes multisseriadas do município de Capim Grosso, configuram-se através dos seguintes aspectos: 1) o ingresso na docência nas escolas rurais do município se deu a partir de convites de fazendeiros e lideranças políticas da época e sem formação específica; 2) a aprovação no concurso possibilitou continuar nas comunidades rurais e garantiu a estabilidade, plano de carreira e os direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro e aposentadoria; 3) as professoras iniciaram suas atividades profissionais como professoras leigas e com o tempo foram se qualificando e adquirindo outras formações; 4) as professoras informaram que no início da docência enfrentaram diversas dificuldades em relação às instalações físicas, recursos materiais, serviços básicos como água e energia elétrica, contudo, sinalizam que, atualmente, houve melhorias.

É inegável que as condições de trabalho necessitam de atenção por parte do poder público, em especial as secretarias de educação. Conforme evidenciamos, é importante compreender que as condições de trabalho envolvem diferentes aspectos, como vínculo funcional, formação, recursos materiais, salário, dentre outros. Nesse sentido, devemos construir uma política educacional capaz de ofertar adequadas condições de trabalho aos professores, como reflexo do processo de valorização profissional.