Cum finis.... quum finis! Dona Yáyá vivia dentro dela dentro da casa dentro dela dentro Cum finis.... quum finis! Dona Yáyá has lived inside her insides the house inside her insides

Paulo Celso da Silva 
y Mara Rovida 

https://doi.org/10.25965/trahs.3499

Dona YáYá, ou Sebastiana de Mello Freire (1887 - 1961) conheceu a riqueza material ao nascer na alta burguesia do Estado de São Paulo e posteriormente a pobreza moral quando confinada em casa por 36 anos (1925-1961), diagnosticada como 'psicose esquizofrênica', como relatava a linguagem médica da época. A casa onde ficou confinada na cidade de São Paulo, então longe do centro, em uma chácara de 2600 m², foi se transformando com as mudanças de saúde. Este artigo apresenta um panorama do personagem no contexto da época que viveu para, em seguida, fazer uma análise do peso que um cotidiano trágico traz para todos, mas com mais intensidade e força para uma mulher confinada e não mais dona de seu tempo presente e futuro. Seus problemas e dificuldades mentais são interpretados moralmente, assim como suas escolhas, por exemplo, o fato de não aceitar os pretendentes ao casamento foi considerado pelos médicos como um transtorno mental. O diagnóstico masculino contrastou com o cuidado diário das amigas, que dedicaram a vida a garantir um pouco do bem-estar. Aplicando um estilo de ensaio, pretendemos levar o leitor ao tempo da personagem e dar a conhecer os valores de uma sociedade industrial que se formava em São Paulo e o papel feminino burguês em construção.

Dona YáYá, o Sebastiana de Mello Freire (1887 – 1961) conoció la riqueza material al nascer en la alta burguesía del Estado de São Paulo y después la pobreza moral cuando encerrada en una casa durante 36 años (1925-1961), diagnosticada como ‘psicosis esquizofrénica’, como el lenguaje medica de la época informaba. La casa donde estaba recluida en la ciudad de São Paulo, entonces alejada del centro, en una finca de 2600 m², se transformó con los cambios en su salud. Este artículo presenta un panorama del personaje en el contexto de la época que vivió para, en seguida, hacer un análisis del peso que un cuotidiano trágico trae para la todos, pero con más intensidad y fuerza para una mujer confinada e ya no más dueña de su tiempo presente y futuro. Sus problemas mentales y dificultades son interpretadas moralmente, así como tus elecciones, por ejemplo, el facto de no aceptar los pretendientes de bodas fue considerado por los médicos como un desorden mental. Los diagnósticos masculinos contrastaban con el cuidado diario de sus amigos, quienes dedicaban su vida a garantizarle un poco de bienestar. Aplicando un estilo ensayístico, pretendemos llevar la lectora y el lector a la época del personaje y dar a conocer los valores de una sociedad industrial que se formaba en São Paulo y el papel femenino burgués en construcción.

Dona YáYá, ou Sebastiana de Mello Freire (1887 - 1961) a connu la richesse matérielle quand elle est née dans la haute bourgeoisie de l'État de São Paulo, puis la pauvreté morale quand elle a été enfermée dans une maison pendant 36 ans (1925-1961), avec un diagnostic de "psychose schizophrénique", comme l'indiquait le langage médical de l'époque. La maison où elle était enfermée dans la ville de São Paulo, alors loin du centre, dans une ferme de 2600 m², a été transformée avec les changements de son état de santé. Cet article présente un aperçu du personnage dans le contexte de l'époque où il a vécu, pour ensuite faire une analyse du poids qu'un quotidien tragique apporte à chacun, mais avec plus d'intensité et de force pour une femme confinée et non plus maître de son temps présent et futur. Ses problèmes et ses difficultés mentales sont interprétés moralement, tout comme vos choix. Par exemple, le fait de ne pas accepter des prétendants au mariage a été considéré par les médecins comme un trouble mental. Le diagnostic de l'homme contrastait avec les soins quotidiens de ses amis, qui ont consacré leur vie à lui garantir un peu de bien-être. En appliquant un style d'essai, nous voulons emmener le lecteur à l'époque du personnage et faire connaître les valeurs d'une société industrielle qui se formait à São Paulo et le rôle féminin bourgeois dans la construction.

Dona YáYá or Sebastiana de Mello Freire (1887 - 1961) was introduced to material wealth when she was born in the upper bourgeoisie of the State of São Paulo and later moral poverty when locked up in a house for 36 years (1925-1961), diagnosed as' schizophrenic psychosis', as the medical language of the time reported. The house where she was confined in the city of São Paulo, then far from the center, in a 2600 m² farm was transformed as the changes in her health were happening. This article presents an overview of the character in the context of the time he lived in order to immediately make an analysis of the weight that a tragic routine brings to everyone, but with more intensity and strength for a woman confined and no longer the owner of her own present and future time. The mental problems and difficulties of her are interpreted morally as well as her choices, for example the fact of not accepting the wedding proposers was considered by the doctors as a mental disorder. The male diagnoses contrasted with the daily care of her friends, who dedicated their lives to guarantee her a little well-being. Applying an essay style, we intend to take the reader to the time of the character and make known the values of an industrial society that was formed in São Paulo and the bourgeois female role under construction.

Índice
Texto completo

Introdução. Cum finis.... Quum finis! Dona YáYá vivia

O título do artigo, 'Cum finis....', pode surpreender o leitor. Assim, é necessário começar dizendo que nossa ideia é indicar que, antes de tudo, Dona YáYá e sua casa "viviam fechadas uma na outra". É por isso que não há pontuação, para que os movimentos das duas sejam constantes quando se lê ou para refletir depois de conhecer a história do personagem no final da leitura.

Dona YáYá, ou Sebastiana de Mello Freire, nasceu em uma rica família aristocrática no Estado de São Paulo, Brasil, no final do século XIX. Era 1887 e o Brasil estava prestes a decretar o fim da escravidão (maio de 1888) e o fim da monarquia (novembro de 1889), portanto estes eram tempos de mudanças radicais em uma sociedade com uma longa tradição agrária, que também investia em outros setores, incluindo o processo de industrialização que avançava em algumas cidades e capitais, como era o caso de São Paulo e cidades vizinhas e do Rio de Janeiro.

O patriarca da família Mello Freire, Manoel, era advogado, formado em 1857, então com 23 anos de idade, proprietário de muitas terras e, para a época, era normal que ele fosse também um político, e até participou como senador na constituição da república. Casado com Josephina Augusta de Almeida, ele teve cinco filhos: Leonor Melo Freire; José Francisco de Almeida Melo Freire; Benedita Georgina de Almeida Melo; Manoel de Almeida Melo Freire, Júnior e Sebastiana Melo Freire. Como empresário na cidade de São Paulo, foi diretor da Companhia Mercantil Paulista (1892).

Note de bas de page 1 :

No mapa (figura 1) pode-se verificar nas indicações como Chácara do Marechal Arouche, Chácara Martino da Silva Prado, Chácara do Bexiga, Chácara do Cônego Fidelis, todas elas fora do perímetro do centro histórico e da cidade que se expandiu desde o início do século XIX.

Assim como outros nomes da política local, ele participou da "modernização da cidade", uma vez que a cidade com aspectos rurais, muda radicalmente no ritmo do dinheiro que vem do café. Com isso, houve um intenso movimento imobiliário e as grandes e médias fazendas são transformadas em urbanizações1.

figura 1- História do Plano da cidade de São Paulo, 1800-1874. Fonte: Toledo, 1983, p. 161.

figura 1- História do Plano da cidade de São Paulo, 1800-1874. Fonte: Toledo, 1983, p. 161.

Destaque foto por Felipe Cidade, 2020.

No final, Manoel Mello Freire vai aumentar ainda mais a fortuna da família e manter a fazenda na cidade de Mogi das Cruzes, mudando-se para a Rua 7 de Abril, 57, no centro de São Paulo. Entre 1900 e 1950, São Paulo deixou de ser uma cidade rural para se tornar a maior metrópole do Brasil. Esta transformação é registrada na obra "A Capital da Vertigem - uma história de São Paulo de 1900 a 1954" de Roberto Pompeu de Toledo (2015) cujo título é significativo do peso deste período na história da cidade. O processo de urbanização estabelecido nesse período determinaria a forma de ocupação do território cujas marcas ainda hoje se fazem sentir, quando o confinamento imposto a Dona YáYá se torna uma regra geral impulsionada pela pandemia da COVID-19. Será nesta cidade que mudará, quase a cada década, que Dona YáYá passará seus 74 anos, dos quais 36 anos sem saber das transformações, isolada em seu confinamento urbano.

Figura 2- Casa na Rua 7 de Abril. Fonte: : https://youtu.be/ARFS21nNEuw

Figura 2- Casa na Rua 7 de Abril. Fonte: : https://youtu.be/ARFS21nNEuw

Assim foi.

A não-ficção de uma vida

Neste ano de 2021, completam 60 anos de morte de Dona YáYá. Em São Paulo ela aprendeu os valores burgueses femininos, marcados pelo patriarcalismo, que ela mesma não pode viver muito em sua casa, porque em 1900 sua mãe e seu pai morrem com dois dias de diferença entre um e outro e, mais complicado ainda é que eles estavam em lugares diferentes e nenhum deles sabia da doença do outro, possivelmente a febre amarela, uma vez que, em 1900, houve a grave epidemia no estado de São Paulo, dizimando muitas vidas.

Dona YáYá vivia em São Paulo há alguns anos. Parte de sua infância ela viveu na cidade onde nasceu, Mogi das Cruzes – localizada a 60 quilômetros de São Paulo –, em uma fazenda que pertencia a sua família. Nessa cidade sua família viveu a perda de duas filhas e um filho: Benedita Georgina (1877-1879) morreu aos 3 anos de idade após ter engolido um botão e Leonor (1860-1870) morreu de tétano após espetar o dedo em uma laranjeira, anos antes, José Francisco (1874-1875) também tinha morrido. Em 1882 nasceu Manoel e em 1887 nasceu Sebastiana ou YáYá, como a família carinhosamente a chamava.

Segundo o jornalista Francisco Ornellas, uma das razões para a transferência para São Paulo foi a educação:

Ela viveu [em Mogi das Cruzes] até os 7-8 anos de idade e, a partir de então, precisava ser educada. É estranho pensar que, no final do século XIX e início do século XX, os pais de uma menina pensariam em dar a seus filhos, especialmente sua filha, uma educação acadêmica, pois eles geralmente eram acompanhados por tutores que lhes davam o alfabeto básico, um ou outro tipo de francês e, sobretudo, piano, que era a educação da mulher brasileira, da mulher paulistana, da mulher da classe privilegiada no início do século XX (Documentário Histórias de dona YáYá, minuto 9:47).

Quando seus pais morreram, Sebastiana, então com 13 anos, e seu irmão Manoel com 18 anos, na época estudante de direito, foram atendidos por Caetana Grant de Oliveira, madrinha de Yayá. Em 1921, quando Nhá Caetana, como Caetana Grant de Oliveira era chamada, morreu, Elisa Grant, a melhor amiga de Sebastiana e sobrinha de Nhá Caetana, assumiu os cuidados da órfã. Como tutor, as autoridades estaduais, seguindo o indicado no testamento do pai de Yayá, destacaram o advogado Manoel Joaquim de Albuquerque Lins que, em sua carreira política, se tornaria presidente do Estado de São Paulo entre os anos de 1908-1912 (Rodrigues, 2001: 22).

Ela continuou seus estudos no Colégio Notre-Dame de Sion onde as filhas da elite paulistana estudavam francês, pintura, piano, etiqueta e alguns trabalhos manuais, considerados femininos. Mas o cotidiano é abalado novamente, cinco anos depois, seu irmão desapareceu quando participava em uma viagem de Buenos Aires a Santos. Tudo leva a crer que se tratou de suicídio. O médico do navio registrou o incidente:

Declaro que, por volta de uma hora da noite, fui chamado para ajudar Nhô Manuel de Mello Freire, um passageiro de primeira classe a bordo do "Orion", que tinha sofrido anteriormente de doença mental. Quando cheguei, o encontro em um ataque de raiva e, para contê-lo, foi necessária a ajuda do mordomo, do maquinista, do chefe dos criados e do pessoal a bordo. Após quarenta minutos, ele estava dormindo e calmo, pelo que julguei desnecessário meus serviços, indo logo para a cama na cabine seguinte para atender a qualquer eventualidade, pois confiei o inferno a dois criados. Após três horas fui acordado e avisado de um novo acesso de fúria... Ao entrar em sua cabine, encontrei a torre de vigia deserta e aberta, um sinal evidente de que ele havia se jogado ao mar (Grant, 2001: 66).

Seu corpo nunca foi encontrado e Sebastiana, com 18 anos de idade, agora é a única Mello Freire viva. Enquanto isso, em sua casa na Rua 7 de abril, durante um período que se estende desde a morte de seu irmão até os primeiros sinais da doença, houve momentos de felicidade. Um desses momentos foi quando ela esteve na Europa em 1914, acompanhada por suas amigas Eliza Grant, Rosa Masulo e Hadjine Krug. Em uma carta a Georgina Grant, Dona YáYá, em Genebra, Suíça, comenta a situação de guerra "os alemães estão longe, a Suíça é neutra, por que ficar chorando! para ficar velha, feia, ridícula, não 'vale a pena'" (Grant, 2001:70). Apesar da guerra, ela permanecerá na Europa por seis meses.

Outra alegria de Sebastiana era seu estúdio fotográfico, uma de suas paixões junto com seus cães poodles Fifi e Blanchete. Em sua casa, na rua 7 de abril, ela mantinha um laboratório no qual praticava seu hobby com fotos de imagens de santos, que ela tanto amava. Ela tinha dois carros de luxo com os quais viajava para suas fazendas em Guararema, uma limusine Renault e um Willys-Knight Torpedo Roadster. O depoimento – postado nos comentários do arquivo no YouTube do Documentário “Histórias de Dona Yayá” – do Sr. Mario Sergio informa:

Note de bas de page 2 :

O motorista dos carros por muitos anos foi o Sr. Augusto Rodrigues, irmão de uma das empregadas da casa, (Rodrigues, 2001, p. 23).

Dona Iaiá costumava ir até minha casa com motorista2 e acompanhante, que se dizia sua irmã, e hoje sei que não o era, para levar minha irmã a passear e comprar doces, mas só o motorista saia do carro. E por vezes minha mãe ia até a casa com minha irmã e lá ficavam à mesa e minha irmã brincando como qualquer criança travessa. Mostrei fotos para minha irmã e ela reconheceu e passou a informar detalhes. Ela nos conheceu através de uma madre do colégio Sion, o qual promovia enxovais para bebês de pessoas mais pobres etc. (Documentário, 2006).

Em outra parte de seu testemunho, Mario Sérgio, mesmo que não indique as datas, oferece informações interessantes quando declara que sua família não sabia da doença:

E não citei os meus inúmeros parentes que vieram do sul de Minas Gerais e, dona Iaiá, conseguia propriedades para que estes alugassem e morassem! Minha mãe sempre me contava isso, mas não sabia que ela tinha doenças mentais! Nunca soubemos nada. Todos eram sempre muito discretos.
Isso é interessante pois, vê-se que ela tinha, até certo ponto, domínio sobre algumas decisões que tomava a respeito de seus bens.
Ela deveria ser uma das inúmeras beneméritas do colégio Sion, pois foi com esse contato que minha família a conheceu. Elas davam enxovais completos para bebês de famílias menos afortunadas. Minha irmã foi uma dessas beneficiadas. E o colégio também dava bolsas completas às primeiras filhas de moças, casadas, que tivessem sido membros da Congregação católica Filhas de Maria. Minha irmã não estudou lá por serem duas meninas e a família não queria que uma estudasse e outra não no referido colégio. ....
Parabéns às grandes mulheres paulistas que fizeram nossa sociedade paulistana e paulista, e nem sempre são lembradas! Como é o caso de dna Olívia Guedes Penteado, por exemplo... (Documentário, 2006).

No final de 1918, Dona YáYá foi acometida pela gripe espanhola e esteve muito doente. Ela escreveu um testamento em que contemplava suas amigas, a família Grant, organizações de ajuda e o Colégio Sion, mas este documento nunca foi registrado no cartório, portanto nunca teve validade legal. Isto porque as mulheres que cuidavam dela estavam certas de que sua saúde melhoraria e não fizeram as formalidades legais do documento. Entretanto, os primeiros sinais de sua fraqueza mental começaram nesse período.

Dados da época indicam que "A alta e rápida letalidade do vírus – que atingiu principalmente adultos entre 20 e 35 anos de idade, desafiava as terapêuticas conhecidas e disponíveis à época, tensionando práticas científicas e populares de prevenção e cura em meio ao pandemônio instaurado no País"(Ribeiro, 2018: s/p). O número oficial de mortes na cidade de São Paulo passou de 5 mil pessoas entre o primeiro caso no início de outubro até 26 de novembro, quando o número de mortes diminuiu.

A gripe espanhola também foi acompanhada pela fome, devido ao aumento dos preços dos produtos básicos para os mais pobres:

Se “cautela e canja de galinha não fazem a mal a ninguém”, na gripe espanhola este ditado popular foi tomado à risca! Espaços e contatos circunscritos, relações sociais esgarçadas e, junto ao repouso e aos medicamentos, o leite e a carne de frango tornaram-se essenciais à recuperação dos gripados elevando mais e mais seus preços, deixando-os inacessíveis à maioria da população. Os corpos febris que mais rapidamente tombaram gélidos foram os já descarnados em vida, débeis pela fome, muitos já acometidos por moléstias decorrentes de inanição e de moradias insalubres. (Ribeiro, 2018: s/p).

Donã YáYá, com 31 anos de idade, não tinha tais problemas financeiros. Entretanto, de acordo com as anotações feitas por Eliza Grant em seu diário, o início dos problemas de D. YáYá ocorreram em 19 de janeiro de 1919 (Grant, 2001: 71), quando ela passou a desconfiar de todos e tinha medo de comer com receio de ser envenenada. Em seus delírios mais profundos, ela tentou o suicídio e a primeira hospitalização em clínicas para pessoas alienadas aconteceu. O estado de sua saúde física e mental declina paulatinamente ao longo de mais de 40 anos; a agressividade inicial daria lugar à apatia, até sua morte. Nesse período, ela estará nas mãos de pessoas que decidirão suas ações presentes e futuras.

A internação de Dona YáYá chamou a atenção do jornal O Parafuso, como veremos a seguir.

A controvérsia do jornal O Parafuso

O jornal O Parafuso circulou em São Paulo entre 1915 e 1921, segundo o pesquisador Brás Ciro Gallotta (1997), que estudou o periódico, um exemplo da chamada imprensa humorística que começou a surgir no final do século XIX. De acordo com Gallotta (2006), o humor presente nesta produção informativa tem uma forte relação com o desenvolvimento da cidade como metrópole. Cenas urbanas tornam-se alvo de piadas - desenhos animados e cartoons começam a ser usados como expressão desse humor - mais ou menos ácidas. De fato, uma das questões levantadas pelo pesquisador refere-se à forma como essas revistas serão classificadas, algumas como humor saudável e outras como exemplos de sensacionalismo.

Por que, para alguns estudiosos, O Parafuso era um jornal humorístico associado a escrache, difamatório, pasquines e à "imprensa sensacionalista"? De onde vêm essas referências? O que o distingue de um jornal associado a "humor saudável"? (Gallota, 2006:15).

O Parafuso acabou sendo considerado um jornal satírico, difamatório e sensacionalista, assim é apresentado no site do Centro de Preservação Cultural (CPC), cuja sede é a Casa de Dona YáYá, no Bexiga, bairro central da cidade de São Paulo. Ao traçar a história da personagem que dá seu nome ao CPC, o texto institucional indica que O Parafuso cobriu o caso de forma sensacionalista e seria esta narração, em parcelas, que teria contribuído decisivamente para a versão de que o caso de YáYá é apenas mais uma história envolvendo a ganância de guardiões e tutores legais capazes de tudo para ter acesso ao dinheiro do jovem órfão rico.

O jornal da época – O Parafuso – acompanhou o caso e produziu várias histórias sensacionalistas, semelhantes a um romance em série no qual contava a história da hospitalização de YáYá como "a odisséia de uma milionária" vítima de uma trama envolvendo seus guardiões, cuidadoras, médicos, parentes próximos e a família de sua madrinha (CPC, online).

Ainda segundo o texto do CPC, a cobertura do jornal teve tal impacto que resultou na troca de médicos que acompanharam o caso e na transferência de YáYá do Hospital Instituto Paulista – onde ela permaneceu por um ano – para a casa, inicialmente alugada, no bairro do Bexiga.

A interferência da denúncia feita ao caso de Dona YáYá por O Parafuso ocorreu durante 1919 até o final de suas atividades em 1921. Nesse período, destaca-se a divulgação de um relatório médico, que promoveu a saída de YáYá do hospital, como mencionado acima, e a publicação do número de telefone da casa do Bexiga: foi um incômodo tão grande que a linha teve que ser desconectada após a publicação.

A transformação do corpo e da casa

A casa no bairro do Bexiga foi comprada pelos tutores de Dona YáYá com a ideia de transformá-la em um asilo privado com reformas na estrutura interna e externa. A casa da Rua 7 de abril não era adequada porque estava no centro da cidade e havia muito barulho, e os médicos entendiam que seria prejudicial à saúde. Por outro lado, a casa na Rua Major Diogo, 353, era uma propriedade em um bairro não tão distante do centro, mas o suficiente para ter silêncio e ainda: "a pessoa doente será vigiada sem saber. Ela terá a ilusão de ter liberdade, mas a vigilância permitirá apenas o que julgar conveniente para ela... o método francês de não retenção" (Rodrigues, 2001: 32).

O escritor brasileiro Lima Barreto definiu muito bem a permanência no asilo: "os detentos do asilo acordam lembrando que já não sabiam mais sonhar. Como os personagens de Dante quando entraram no inferno, eles deixaram de fora toda esperança" (Rodrigues, 2001: 56).

Para a "casa nova" foram trazidos alguns objetos que poderiam ser representativos para Dona YáYá, seu piano, imagens de santos que ela gostava e objetos que se referiam a seus pais. Entretanto, três quartos foram reservados para ela, em um deles havia uma cama e um vaso sanitário da época (feito de madeira) que eram cimentados no chão, as janelas eram fechadas para que somente luz e ar passassem e eram projetados – pelo médico Juliano Moreira, um conhecido psiquiatra da época – para abrir somente o lado externo; o chão era feito de ladrilho sem emendas. Através de uma pequena janela de uma das salas ela contemplava durante muitas horas as imagens de santos que estavam no aparador lateral do outro cômodo.

A partir das fotos é possível ter uma ideia das instalações disponíveis para Dona YáYá:

Figura 3 - janela interna pela qual observava os santos no outro cômodo

Figura 3 - janela interna pela qual observava os santos no outro cômodo

Figura 4 - detalhes do piso - foto Sinara Medeiros

Figura 4 - detalhes do piso - foto Sinara Medeiros

Figura 5 - detalhe do chuveiro quase no teto do banheiro- Foto: Sinara Medeiros

Figura 5 - detalhe do chuveiro quase no teto do banheiro- Foto: Sinara Medeiros

Figura 6 - detalhe do olho mágico na porta do banheiro - foto: Sinara Medeiros

Figura 6 - detalhe do olho mágico na porta do banheiro - foto: Sinara Medeiros

Figura 7 - olho mágico na porta do banheiro - foto Sinara Medeiros

Figura 7 - olho mágico na porta do banheiro - foto Sinara Medeiros

Figura 8 - Antigo quarto transformado em sala para o confinamento de Dona YáYá. Foto: Candida Vuolo. Comissão de Patrimônio Cultural da USP. A casa de Dona YáYá, 2. ed., São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: 131.

Figura 8 - Antigo quarto transformado em sala para o confinamento de Dona YáYá. Foto: Candida Vuolo. Comissão de Patrimônio Cultural da USP. A casa de Dona YáYá, 2. ed., São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: 131.

Figura 9 - varanda do lado norte

Figura 9 - varanda do lado norte

Figura 10 - proprietários e mudanças na casa de D. YáYá.

Figura 10 - proprietários e mudanças na casa de D. YáYá.

Figura 11 - Solário da Casa de Dona YáYá antes e depois da restauração. Foto: Candida Vuolo. Coleção do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo, n/d.

Figura 11 - Solário da Casa de Dona YáYá antes e depois da restauração. Foto: Candida Vuolo. Coleção do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo, n/d.

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Figura 12 - Casa de Dona YáYá - antes e depois da restauração . Fonte: Divisão de Patrimônio da Universidade de São Paulo, s/d

Figura 12 - Casa de Dona YáYá - antes e depois da restauração . Fonte: Divisão de Patrimônio da Universidade de São Paulo, s/d

O solário das ilustrações 11 e 12 só foi construído quando Dona YáYá tinha 65 anos (1952), para que ela pudesse sair de seu quarto, caminhar, ver e sentir o sol. Foi construído em parte do alpendre central. Também naquela época o guardião do estado, a fim de diminuir um pouco sua tristeza, aprovou a instalação de rádio e televisão na casa. Contudo, não temos informações de como esses meios interferiam ou não no seu cotidiano. Levando-se em conta que em nenhum dos relatos, ao menos, encontramos uma menção de que ela ouviu uma música no rádio e gostou ou assistiu alguma programação televisiva, inferimos, neste momento, que não foi um diferencial na sua existência. Principalmente porque, nos aposentos destinados a Dona YáYá, não havia mais do que o essencial para seu mínimo conforto. Como foi desenvolvido socialmente no Brasil, o rádio e depois a televisão ficavam na sala, como parte da mobília desse cômodo. Apenas citando outros detalhes desse contexto histórico, os anos 1950 marcaram o início da criação e das transmissões televisivas no Brasil e somente os muito ricos possuíam um aparelho em casa. Entretanto, por sua formação musical, é de se supor que um gramofone ou vitrola já existisse na casa, mas também não há menção disso como forma de entreter ou não a confinada.

A transformação do espaço é coerente com as transformações que aqueles que se preocupam com ela acreditam que ocorrerão. Confinado em seu espaço, o corpo de Dona YáYá se torna mais pesado, assim como sua existência se torna mais pesada. Uma vez que os corpos amigos não mais a visitam, seus cuidadores celebram seu aniversário como sempre fizeram com bolos e doces. Dona YáYá não aproveita o seu tempo, ela não parece mais conhecê-lo ou reconhecê-lo.

Dona YáYá, ou Sebastiana de Melo Freire, morreu na segunda-feira, 4 de setembro de 1961, às 14h55, vítima de insuficiência cardíaca em um quarto do Hospital São Camilo, onde havia sido internada em 22 de agosto. Em sua certidão de óbito a informação é tão geral que, certamente, serviria para atestar a vida de muitas mulheres da época: sexo feminino; cor da pele, branca; dona de casa; nascida em Mogi das Cruzes; solteira; causa da morte, insuficiência cardíaca. Isto é o que está escrito no documento de óbito número 13.900, folha 96, livro 15 do subdistrito de Perdizes em São Paulo (Ornellas, 2001, p. 80).

Dona YáYá, mulher, rica, órfã, independente, moderna, louca!!!!

Ser uma mulher rica, independente e solteira em uma sociedade patriarcal nas primeiras décadas do século XX era quase uma heresia contra os costumes, evidentemente os costumes masculinos. Quando atentamos para a história de Yayá e todas as lacunas existentes em sua trajetória, isso nos faz pensar e refletir que, certamente, houve um problema de saúde, contudo, não de insanidade. Pelos testemunhos de amigas e mulheres que viveram com ela, o que é considerado uma tragédia familiar, com todos os mortos e mitos criados, não parecia afetá-la tanto, sua religiosidade pode ter sido um suporte nos maus momentos, mas acreditando que tempos melhores viriam. Sua viagem ao exterior e as idas à fazenda em Mogi das Cruzes, onde desfrutou da natureza e da presença de conhecidas e amigas locais que a acompanharam, mostra a felicidade e a simplicidade que algumas pessoas ricas podem desfrutar.

Sem dúvida, em uma parcela muito específica da sociedade brasileira, como para a parcela dos artistas, a libertação das mulheres foi uma prática um pouco mais aceita. Mas, essa parcela, em sua maioria, também era composta por pessoas das classes altas, sendo um exemplo os participantes e criadores da Semana de Arte Moderna.

Mas, percebe-se que, mesmo no mundo das artes, há permanência e visibilidade masculina, a presença feminina é efêmera, mutável e com uma certa conotação simbólica. Algo como 'Tarsila do Amaral como esposa de Oswald de Andrade', ou 'Anita Malfati que foi duramente criticada, em 1917, por suas pinturas modernas pelo escritor Monteiro Lobato'. Nos discursos, a posição dos homens prevalece sobre a das mulheres, refletindo o patriarcado mesmo entre os mais liberais.

Poucas mulheres na elite de São Paulo, nestes anos, destacaram-se de uma presença masculina. Dona YáYá era uma dessas mulheres. Ela não estava à frente de seu tempo, ao contrário, ela estava presente e vivendo a plenitude de um tempo em que, em muitos lugares do mundo, as mulheres viviam essa possibilidade de serem MULHERES.

Esta afirmação não era mais nova no século XX, Mary Wollstonecraft em 1792 publicou a obra "Vindicação dos direitos da mulher com críticas sobre questões políticas e morais" (2014) na qual ela contradiz as teses de Rousseau apresentadas na obra Emile ou Da educação (2014), para quem a educação das mulheres deveria ser limitada à abnegação e obediência a um homem, bem como ao coletivo feminino, em geral, submetido à autoridade concreta e simbólica dos homens e, é claro, longe das questões sociais e políticas. Às mulheres era reservada a vida doméstica onde elas poderiam proporcionar uma vida agradável aos futuros cidadãos, ou seja, aos filhos homens (Valcárcel 2000:25).

[Mary Wollstonecraft] queria que as mulheres se tornassem seres racionais, independentes, cujo senso de valor não vinha de sua aparência, mas de sua percepção interior de autodomínio e conhecimento. As mulheres deveriam ser educadas; suas mentes e seus corpos deveriam ser treinados. Isso os tornaria bons companheiros, esposas, mães e cidadãos (Brace 2000 apud Stanford Encyclopedia of Philosophy).

A educação permitiria às mulheres desfrutar plenamente de sua humanidade, com o uso da razão e do autocontrole. Wollstonecraft avança suas considerações ao propor "um esboço detalhado das mudanças necessárias nos currículos escolares à sugestão de que as mulheres não sejam concedidas apenas os direitos civis e políticos, mas que tenham representantes eleitos por elas mesmas" (Stanford Encyclopedia of Philosophy). Fora dos cânones da época, ela sugere que as mulheres poderiam estudar para serem médicas, parteiras, uma vez que são aceitas como enfermeiras.

Se se buscava uma sociedade verdadeiramente moral, a família tinha que mudar e isto, por sua vez, exigia uma transformação completa na natureza da relação entre homem e mulher antes e dentro do casamento (Botting apud Stanford Encyclopedia of Philosophy). Somente uma boa educação de ambos os sexos poderia garantir isso. Este foi o núcleo de seu ataque tanto a teóricos políticos quanto a educadores (Stanford Encyclopedia of Philosophy).

Pode-se ver, com base nestes debates no final do século XVIII e conhecidos por alguns grupos da América do Sul, graças às traduções ou mesmo edições em inglês que chegaram aos países, que a prática social brasileira estava longe de considerar a cidadania de Dona YáYá, não só os homens, mas também as mulheres que, pelo valores de época se supõe, ficaram chocadas com seus carros, com suas histórias familiares, com sua opção pela vida como solteira. Assim:

As ideias que orientavam o pensamento das elites intelectuais e se disseminavam entre a população reforçavam essa destinação considerada natural e manifesta nas mulheres, ressaltando seu valor na educação dos filhos e ancorando nesse destino suas necessidades educativas. Eram elas as guardiãs da virtude e para o desempenho de seu papel social deveriam ser educadas dentro dos patamares almejados pelas esferas sociais do período...Não estava prevista a concorrência com os homens em termos profissionais e intelectuais, o que ultrapassaria os limites de segurança social.
As redes de significações que se formavam implicavam numa configuração de valores entre os sexos, em que as práticas, os símbolos, as regras de conduta se estruturavam sob as relações de poder. Interpretava-se a realidade da vida feminina a partir da experiência masculina e dos paradigmas socialmente construídos nas relações de gênero. A alteridade era assentada sobre uma escala axiológica perante a qual as mulheres deveriam se submeter para não incorrerem em desvios que as deixariam proscritas perante a sociedade (Almeida, 2013:187).

Ser mulher e “louca” trazia um componente facilitador para os experimentos desumanos e macabros que povoaram as ideias masculinas, as únicas aceitas como válidas nas ciências. Experiências brutais europeias de – possíveis – tratamentos em confinamento eram reproduzidas aqui, já no século XVII, encontramos exemplo dessas “buscas” científicas:

Note de bas de page 3 :

Tradução nossa. Una volta c'era il Mastrogiorgio. E con il Mastrogiorgio c'era il pozzo dei pazzi. Nella prima metà del 600 mastro Giorgio Cattaneo, il medico dei pazzi, curava i malati di mente più esagitati legandoli a una grande ruota che poi calava nel pozzo degli Incurabili, su a Caponapoli. Sotto la sferza di Mastrogiorgio la ruota veniva fatta girare vorticosamente, per portare i folli allo sfinimento in quello che potremmo definire una sorta di elettrochoc ante-litteram, perché a quei tempi si pensava che la follia fosse dovuta alla presenza di meningi anormali e a un'eccessiva concentrazione di nervi nelle tempie, che provocava nei pazienti neurolabili - gli scemi di cervello, come venivano chiamati - un moto disperato e perpetuo.

Era uma vez Mastrogiorgio. E com o Mastrogiorgio havia o bem para os loucos. Na primeira metade do século XVII, o mestre Giorgio Cattaneo, médico dos loucos, tratava dos mais agitados mentalmente amarrando-os a uma grande roda que descia no Poço dos Incuráveis, lá em Caponapoli [Italia]. Sob o chicote de Mastrogiorgio a roda girava como um redemoinho, para levar os loucos à exaustão no que poderíamos definir uma espécie de eletrochoque-litteram, pois naquela época se pensava que a loucura se devia à presença de meninges anormais e uma concentração excessiva de nervos nas têmporas, o que causava nos pacientes neurológicos ​​– os sem cérebro, como eram chamados – um movimento desesperado e perpétuo (Il Matutino, 2020: s/p)3.

Note de bas de page 4 :

Tradução nossa. Dalle bambine alle prostitute, dalle lesbiche (dunque malate) alle infanticide, dalle immorali alle uxoricide.

Essa situação geral, é ainda mais complicada no caso das mulheres, a historiadora italiana Candida Carrino que dirige l'Archivio di Stato di Napoli pesquisou prontuários de pacientes entre o final do século XIX e meados do século XX. As histórias encontradas poderiam ser generalizadas para várias partes do mundo ocidental, com pequenas alterações de particularidades locais uma vez que o confinamento se dá desde “meninas pequenas a prostitutas, de lésbicas (portanto doentes) a infanticidas, de imorais a uxoricidas” (Del Tufo, 2020, s/p)4, vítimas de uma sociedade na qual o valor familiar, ou seja de uma única forma de família possível a ser mantida, era garantido por médicos com a internação e confinamento das mulheres “desviantes” (ou desafiantes?) para toda a vida.

A história das internadas nos ajuda a ilustrar a situação pela qual essas mulheres foram submetidas. Elas estavam, certamente, em São Paulo, Nápoles, Paris, Barcelona, Buenos Aires. Assim como Dona YáYá, pertenciam a todos os manicômios, não tinhan pátria e nem lugar. O sofrimento de todas as irmana internacionalmente, mas outras características também, são mulheres à margem, mulheres livres, consideradas excêntricas e pecadoras em países profundamente católicos. Mulheres que a sociedade desprezava extremamente e considerava perigosas porque temia que pudessem corromper moralmente toda a comunidade. Perigosa para si mesma e para os outros, afirmavam e firmavam genericamente o poder-saber médico, em seus formulários clínicos. Não por acaso, a pesquisadora italiana nomeia os depoimentos como ‘Uma longa história de solidão. E de fantasmas’; o de Olga é um deles:

Note de bas de page 5 :

Tradução nossa. Come il fantasma di Olga - vent'anni, divorziata - entrata nel manicomio di Aversa il 2 novembre 1935. Venne ricoverata in ospedale perché affetta da tubercolosi polmonare, e dall'ospedale spedita direttamente nell'ospedale psichiatrico, perché considerata schizofrenica, nonostante la resistenza della madre, che si dispera perché vorrebbe assumersi, in prima persona, la responsabilità dell'accudimento. «Mia figlia è violenta, lo so, mia figlia grida, lo so, alle volte mi butta tutto in faccia, lo so, ebbene io la prendevo colle buone e tutto era finito. Colle buone e colle carezze tutto era finito, si metteva a ridere...». Ma per i medici di Aversa le carezze di una madre non sono un buon rimedio: l'unica cura è il manicomio. E in manicomio, tre anni dopo, Olga morirà

Como o fantasma de Olga – de vinte anos, divorciada – entrou no manicômio de Aversa em 2 de novembro de 1935. Foi hospitalizada por sofrer de tuberculose pulmonar, e do hospital encaminhada diretamente para o hospital psiquiátrico, por ser considerada esquizofrênica, apesar da resistência da mãe, que fica desesperada porque gostaria de assumir ela mesma os cuidados. «A minha filha é violenta, eu sei, a minha filha grita, eu sei, às vezes ela joga tudo na minha cara, eu sei, segurei firme e gentilmente e tudo acabou. Com gentileza e carinho tudo acabou, e ela começou a rir ... ». Mas para os médicos de Aversa as carícias de uma mãe não são um bom remédio: a única cura é o asilo. E no manicômio, três anos depois, Olga morrerá (Carrino, 2018: 127)5.

Outra pesquisa, agora desenvolvida pelo linguista paulista Antonio Ackel Barbosa, analisa cartas dos pacientes do Sanatório Pinel, antigo hospital psiquiátrico de São Paulo, que nunca foram entregues aos seus destinatários. Ele descreve o prontuário:

Era dotada de temperamento dócil e mostrava-se um tanto retraída, toda dedicada aos arranjos do lar e cuidado dos filhos. Ha cerca de 6 meses, toda a família viu-se alarmada com a mudança radical que se operou no caráter da paciente. Esta passou a mostrar-se independente, voluntariosa, lendo volumes e mais volumes sobre os direitos da mulher, emancipação feminina, etc. Censurada pela progenitora, tomou tal fato como hostilidade, repelindo seus conselhos. Certo dia abandonou o lar, fugindo para o Rio de Janeiro, de onde veio trazida por um irmão. Tanto o marido, como a família, são concordes em afirmar a mudança por que passou a paciente, contando-nos que a mesma passou a mostrar-se excessivamente vaidosa, tentando, mesmo, seguir carreira artística, para a qual, aliás, nunca demonstrou aptidões nem vocação. Interrogada, ela nos disse: “que não tendo vocação para mártir, desejava desquitar-se, pois o marido ultimamente a maltratava; aliás, gostava de outro, e que ninguém poderia censurar seus sentimentos; que infelizmente, as leis dos País não permitiam o divorcio integral, como era do seu desejo, pois não lhe agradaria um concubinato” (Ackel, 2019: 284).

Note de bas de page 6 :

Tradução nossa. La madre e la famiglia in genere tendono ad abbandonare la paziente in manicomio perché il ricovero non ha uno scopo terapeutico, ma solo quello di allontanamento dal contesto sociale.

Os dois estudos, diversos quanto ao conteúdo e objetivos, indicam entretanto como o confinamento feminino estava mais ligado às questões morais, religiosas, culturais, sociais consideradas como distúrbios e passíveis de confinamentos. A autora italiana ainda conclui que aquelas mulheres que tinham distúrbios considerados de conduta sexual “a mãe e a família em geral tendem a abandonar o paciente em um manicômio porque a internação não tem finalidade terapêutica, mas apenas de afastamento do convívio social” (Del Tufo, 2020: s/p).6

Note de bas de page 7 :

Helena Marzano Grant encerra seu artigo ‘A saga de Yayá com a citação de um verso intitulado “Segredo da minha alma” e no rodapé n.9 informa: “Trecho extraído do diário de Sebastiana de Mello Freire. coleção particular, sem data de identificação. Comissão de Patrimônio Cultural da USP (2001). A casa de Dona YáYá, 2. ed., São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: 76.

Como o diário de anotações de Dona YáYá permanece inédito7 e não sabemos qual período ele compreende, podemos apenas inferir que sua condição de interna nos sanatórios não diferenciava muito, com relação aos tratamentos terapêuticos e às considerações clínicas de seus médicos.

A religiosidade de Dona YáYá pode, também, ter influenciado sua decisão de continuar solteira, convivendo com suas amigas, empregadas, de certa forma, reproduzindo o que já havia vivido na sua formação escolar no Colégio Sion. A mesma religião católica que impunha o arquétipo da “mulher-mãe-virgem isenta dos pecados da conjunção carnal” (Almeida, 2013:187) também aceitava, sem contradições doutrinárias ou sociais, as solteiras ricas e doadoras às causas, necessidades ou que se sentiam na obrigação de “auxiliar” igrejas, como era o caso dela.

Figura 13 – Recibo de doação de duzentos mil reis em 25 de julho de 1908, para as obras da Catedral de São Paulo. Fonte: Comissão de Patrimônio Cultural da USP (2001). A casa de Dona YáYá, 2. ed., São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: 69.

Figura 13 – Recibo de doação de duzentos mil reis em 25 de julho de 1908, para as obras da Catedral de São Paulo. Fonte: Comissão de Patrimônio Cultural da USP (2001). A casa de Dona YáYá, 2. ed., São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: 69.

Quando Dona YáYá é admitida na clínica por problemas mentais pela primeira vez, havia uma esperança de melhora e o retorno da normalidade para a casa. Ainda assim, quando o jornal O Parafuso começa a destacar seu caso em 1919, importunando e incomodando pessoas ligadas a ela, acusando a todos de desejarem fortuna, dialeticamente, contribui para que ela seja levada para outro lugar, mais apropriado à sua condição econômica. Mesmo assim, a ideia de que é louca e precisa dos cuidados de outras pessoas persiste, não há bem uma linha que lida com sua condição de mulher, mas já com sua condição econômica, há várias. Os destaques abaixo indicam dois momentos. Um dos jornais solicitando às autoridades uma ação contra a internação e o outro no momento em que ela será levada para sua nova casa, na Rua Major Diogo, 37.

Figura 14 - Destaque do jornal O Parafuso. Fonte: CPC, online

Figura 14 - Destaque do jornal O Parafuso. Fonte: CPC, online

Figura 15 - Destaca a partida de Dona YáYá para uma nova casa Fonte: CPC, online

Figura 15 - Destaca a partida de Dona YáYá para uma nova casa Fonte: CPC, online

Até hoje, nas sociedades patriarcais, a questão do gênero e da saúde mental são tabus. Mesmo em alguns países, ser mulher já é um risco para a saúde mental, estudos também indicam que a situação socioeconômica é um dos fatores para os problemas mentais, especialmente naquelas mulheres que são empregadas domésticas e vivem em áreas pobres, não urbanizadas dos grandes centros. Entretanto, não foi o caso de Dona YáYá. Um exemplo citado por Ramos-Lira em sua revisão do estado da arte sobre a questão de gênero e saúde mental afirma que:

No livro The stress sex: Uncovering the truth about men, women, and mental health, os autores analisam 12 pesquisas nacionais comparáveis sobre distúrbios mentais, incluindo pesquisas realizadas na Grã-Bretanha, Alemanha, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Chile e África do Sul. Os autores concluem que as mulheres têm maior prevalência e são mais propensas que os homens a sofrer de depressão e ansiedade. Estes últimos têm maior prevalência de abuso e dependência de álcool e outras substâncias. Embora nem todas as pesquisas cubram outros distúrbios, Freeman e Freeman relatam que, de acordo com algumas pesquisas, as mulheres são mais propensas a desenvolver distúrbios de personalidade limítrofes e distúrbios alimentares, enquanto as prevalências de distúrbios de conduta e distúrbios de personalidade antissociais são maiores nos homens. Em geral, é notável que as mulheres não só têm taxas mais altas de distúrbios mentais do que os homens, mas também sintomas mais graves e incapacitantes (2014: 275).

Como não há indicações de classe social nestes estudos, mesmo sem uma generalização, parece correto considerar a hipótese de que tais transtornos afetam o gênero feminino, como categoria social e simbolicamente construída para o concreto da vida, e os grupos que se identificam com o gênero.

Isto pode ajudar a indicar a situação de vida de Dona YáYá em uma cidade em transformação, para se tornar uma grande metrópole sul-americana, que ainda manteve por algumas décadas contradições entre uma forma cosmopolita de ser e de perceber o mundo e os valores sociais e morais do patriarcado agrário e católico, predominante desde o período colonial. Até mesmo Mary Wollstonecraft, quando esteve em Portugal, em 1785, tinha uma "opinião muito desfavorável da vida e da sociedade portuguesa, que lhe parecia ser governada por irracionalidade e superstições" (Stanford Encyclopedia of Philosophy), a mesma que governou o Brasil, até que a independência política ocorrida em 1822, mas na qual continuou o filho do rei de Portugal que se tornou o primeiro imperador do Brasil e o primeiro chefe de Estado. Em outras palavras, os valores coloniais e agrários tenderão a enfrentar os valores industriais urbanos desde o final do século XX até, pelo menos, a década de 1940, não sem grande resistência.

Assim como Dona YáYá era uma mulher independente por causa de sua condição na alta classe capitalista que estava se formando, graças ao mercado imobiliário e aos loteamentos comercializados em São Paulo, os trabalhadores têxteis, como mão-de-obra especializada, também tinham uma certa independência, ainda que trabalhador e operário sejam considerados, socialmente, como sinônimos de pessoas pobres. Independência e autonomia significam, portanto, não ter marido, já que esta personagem não é necessária para a produção e manutenção da vida cotidiana destas mulheres.

Note de bas de page 8 :

 Decreto-lei de número 3.200, que dispõe sobre a organização e proteção da família, 19 de abril de 1941. disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3200.htm

Note de bas de page 9 :

Até hoje, quase cem anos depois, ainda ouvimos esta expressão para as mulheres no Brasil, mesmo vindo de outras mulheres. Elas não percebem que não são pobres, nem coitadas, mas mulheres que trabalham para se sustentar. Mas parece que para uma parcela das mulheres, o autossustento não é uma conquista, mas um peso a ser carregado.

A resistência agrária, patriarcal, tradicionalista e assistencialista da elite brasileira estará presente nas políticas públicas devido à sua hegemonia financeira e política. Mesmo com o golpe de 1930 e a ascensão do caudilho Getúlio Vargas, um entusiasta da industrialização e da urbanização, ele soube atender ao patriarcado com seu Ministério da Saúde, criando um manual da boa família e da boa esposa e marido8. Uma boa família era aquela em que a mulher ficava para cuidar da casa e da educação das crianças. Incapaz de falar de uma "má família", os anúncios do ministério tratavam as trabalhadoras como "pobres coitadas" que precisavam trabalhar fora de casa para ajudar na sobrevivência. Ou seja, ambos, trabalhadora e trabalhador, eram cobrados socialmente de não terem um bom salário. A mesma classe que pagava o baixo salário, culpava a classe trabalhadora de ganhar pouco9.

Voltando ao caso de Dona YáYá, sua situação remete a todos esses meandros que compõem a situação política e social das mulheres no Brasil durante o período em que ela ficou doente – e mesmo depois. Seu confinamento em uma clínica e posteriormente em uma clínica privada em sua propriedade é também um confinamento em si mesmo. De certa forma, a casa na Rua Major Diogo que ela transforma é uma extensão de seu corpo, ela é a casa, a casa é ela. Uma entra na outra. Como nos ensina Dardel, em sua fenomenologia geográfica, "o espaço material não é, de forma alguma, uma 'coisa' indiferente, fechada sobre si mesma. É sempre uma questão que acolhe ou ameaça a liberdade humana" (2013: 7).

Se nos permitem algo poético na situação, poderíamos, ainda apoiados por Dardel, pensar que os princípios do masculino e do feminino, para os aborígines, guardam valores diferentes. Relacionado com o “sol, a rocha, os animais terrestres, o princípio masculino estão relacionados com força, poder, luz, pose; enquanto o feminino para o aquático, o ctônico (espírito da natureza interior) misterioso, muito conveniente a um princípio de vida" (Dardel, 2013: 64). Não seria a extensão da casa, exatamente com a intenção de tornar possível a luz? O elemento masculino que tanto a sociedade tirou dela? Se assim foi, Dona YáYá teve sua vitória contra a sociedade patriarcal, de um lugar desprovido de sentido para ela, uma placeness, ela foi capaz de sobreviver tantos anos.

A guisa de conclusão

Cum finis..... Fizemos este movimento de dentro e de fora com Dona YáYá, percorrendo seu curso de vida, livre e trancada em sua casa, isolada do mundo e de uma realidade que estava mudando para a cidade de São Paulo. Não estamos falando do Covid19, do lockdown, do confinamento contemporâneo. Entretanto, pensamos que o leitor deste 2021 está identificado com tal situação, seja ele na França ou no Brasil, em São Paulo ou Barcelona. Não importa de que escala estamos falando, uma coisa que tudo isso nos ensinou é que, não apenas somos vulneráveis, mas não temos tanto controle como imaginávamos ou como nossa racionalidade ocidental gostaria.

O medo que assolou uma órfã milionária nos primeiros anos do século XX é também nosso medo no início do século XXI, o de ser roubado. Não apenas dinheiro ou propriedade, das quais ela tinha mais de oitenta. Perder a identidade de um Mello Freire, de ser a última Mello Freire. Não apenas como um símbolo, mas como um corpo que mantém a força em si mesmo, que ela gostaria de ser des-coberta pelo outro, pela alteridade. Mas, esta possibilidade foi-lhe roubada, em vez de ser des-coberta como mulher, como pessoa, ela foi considerada como estando em-cerrada em seu corpo/mente pela racionalidade e valores morais de um momento preciso. De forma concreta, no caso de YáYá, podemos indicar:

Note de bas de page 10 :

É o caso, por exemplo, da historiadora Marly Rodrigues em já citado estudo; Ana Paula Müller de Andrade no evento do Centro de Pesquisa e Formação do SESC/SP: ‘Dona Yayá: Memória viva do silenciamento feminino por meio da clausura’ (https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/dona-yaya-memoria-viva-do-silenciamento-feminino-por-meio-da-clausura) ; Marilia Capponi e Cristiane Credidio no Espetáculo teatral "Dona Yayá" e Roda de Conversa no evento ‘Semana de Luta Antimanicomial’, realizado pelo Conselho Regional de Psicologia e tem o apoio da Prefeitura de Taubaté (https://guiataubate.com.br/noticias/2018/5/luta-antimanicomial-e-tema-de-acoes-em-taubate)

  • Sua condição de mulher foi também um fator de interdição e subsequente hospitalização e isolamento.

  • A interferência do jornal O Parafuso pode ter contribuído para que ela não fosse hospitalizada, desviando sua trajetória para um confinamento privado na casa do Bexiga.

  • Sua situação financeira foi decisiva para o tipo e qualidade de tratamento que ela recebeu.

  • Na opinião de alguns estudiosos do caso de YáYá10, pode ser indicado que o isolamento pode ter acelerado/intensificado seu estado de saúde mental. Este ponto está próximo da realidade contemporânea, pois o isolamento forçado afetou emocionalmente as pessoas e mesmo aquelas consideradas saudáveis se tornaram vulneráveis.

60 anos após sua morte, Dona YáYá ainda está viva, representada por sua casa, hoje um centro cultural mantido pelo governo de São Paulo. Desta forma, a relação entre corpo-casa/casa/casa-corpo construída desde o primeiro momento em que ela retorna do asilo continua, mas com outras leituras.

Em seu trabalho Diálogos, Gilles Deleuze indaga (1997: 50): “a pergunta é esta: o que um corpo pode fazer? De que afetos é capaz? Experimente, mas você tem que ser muito cauteloso para experimentar”.

Em seguida, ele nos mostra como o poder, seja ele qual for, é incapaz de nos trazer qualquer tipo de felicidade.

Vivemos em um mundo desagradável, onde não só as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar tristes afetos. Tristeza, tristes afetos são todos aqueles que diminuem nosso poder de ação. Os poderes estabelecidos precisam de nossa tristeza para nos escravizar. O tirano, o sacerdote, os que tomam as almas, precisam nos convencer de que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. O longo lamento universal sobre a vida: a falta de ser que é vida. Por mais que digamos "vamos dançar", não estamos felizes (Deleuze, 1997: 50).

O poder dos tutores financeiros, dos amigos que ajudaram na sobrevivência, dos psiquiatras e médicos clínicos, dos engenheiros para mudar a casa, da mídia escrita para deixar clara a história pessoal de uma pessoa doente, do poder público para destinar a fortuna à Universidade de São Paulo organizaram pequenos terrores íntimos. "Tudo é um caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar reuniões, aumentar o poder de ação, deixar-se afetar pela alegria, multiplicar os afetos que expressam ou implicam um máximo de afirmação (Deleuze, 1997: 51).

Ser feliz é tudo o que se quer. “Não se esqueça”.

Não se esqueça

de fechar as portas

e abri-las

quando for embora

destas paredes

Não se esqueça

de colar os envelopes

não haverá mais censura

Não se esqueça

de lavar e comer

não terá de perguntar

da época.

Não se esqueça

de recordar

como comunicar

sem ser apanhada

Não se esqueça

de partilhar

Não se esqueça

de escrever

Não se esqueça

de escolher

as lâminas que se ajustam

ao rancor.

Geraldina Colotti - Non dimenticare