Carvalho, M. K. (2023). O útero biopolítico. São Paulo: Annablume, setembro
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O Essure é um dispositivo semelhante a uma pequena mola, recoberto de níquel e polietileno tereftalato, o plástico PET. Inserido pelo colo do útero até chegar às trompas de falópio, ali ele se ajusta, fixado dentro do tubo da trompa. Por um período de três semanas, uma resposta biológica do corpo encapsula o dispositivo, formando um tecido cicatrizado ao seu redor que preenche completamente a passagem da trompa, impedindo de forma definitiva a passagem de espermatozoides e barrando sua chegada aos óvulos. Desenvolvido pela empresa americana Inceptus Inc. no início dos anos 2000 e posteriormente comprada pela gigante farmacêutica Bayer, o Essure foi disponibilizado no Brasil entre 2009 e 2017, quando foi suspenso temporariamente, e depois em 2019, ocasião em que foi proibido de vez pela ANVISA, por efeitos colaterais graves.
O livro O útero biopolítico1, de Miriam Kênia Carvalho, inicia pelo fim dessa história: a pesquisadora passou quatro anos estudando e analisando grupos virtuais das autodeclaradas “vítimas do Essure”. São aquelas que tiveram o dispositivo implantado em seus corpos – principalmente pacientes da fila da laqueadura que foram convencidas a optarem pela alternativa – e acabaram enfrentando graves problemas de saúde. Os relatos das vítimas incluem dor crônica, hemorragias, insônia, depressão, apenas para listar os mais comuns. Como aponta a autora no início da obra, a promessa da laqueadura indolor e segura tornou-se a realidade do adoecimento de seus corpos e, por consequência, o desmantelamento de suas vidas conforme suas necessidades médicas começaram a impactar seu trabalho, relacionamentos e até a disposição para viver.
O grupo das vítimas do Essure não é um coletivo formal, nem mesmo centralizado. Espalha-se por diversos grupos digitais, em plataformas de rede social como o Facebook, Instagram e WhatsApp, às vezes focado em uma região (grupos cariocas, paulistas ou do Distrito Federal), às vezes unidos pela língua (grupos que reúnem Brasil e Portugal), ou até mesmo cruzando todas as fronteiras, de classe, de escolaridade, de crença, de modo de vida. Em comum, o corpo adoecido pelo Essure, e a luta para terem sua vida de volta.
A obra de Miriam não a revela uma observadora passiva dessa luta. A autora posiciona-se desde o início como parte dessa militância, não só na intenção de que essas vítimas ganhem mais espaço para que suas vozes sejam ouvidas, mas também por enxergar no Essure, não meramente um produto defeituoso da indústria farmacêutica, mas um objeto do biopoder, segundo Foucault, e do regime farmacopornográfico, conceito de Beatriz Preciado (2018) que desvela a transformação capitalista da subjetividade e complexidade dos corpos em realidades tangíveis como moléculas, hormônios, substâncias químicas, que podem ser receitadas e comercializadas pela indústria farmacêutica.
Assim, a luta pelo bioempoderamento, como ressalta a autora, se entremeia em todos os aspectos da obra, começando pela decisão de não utilizar a palavra “mulheres” para descrever as vítimas do Essure, mas sim “corpos com útero”, deixando o outro termo aberto para diferentes corpos, que não possuem útero. Já a escolha do “útero” como designador é também pautada: de um lado, há o sentido concreto do útero enquanto órgão físico, ao qual o Essure invade e com ele se mescla; mas há também o sentido político do útero, a que Miriam ressalta que “o poder tem uma obsessão pelo útero” (p. 29). No regime farmapornográfico do biopoder, revela a autora, o útero é posse pública, sujeito a ser controlado, dominado e engrenado na lógica do capital.
O caráter perverso de útero público é investigado nos capítulos centrais do livro, conforme a autora desenha a trajetória de abusos que deram origem ao Essure. O dispositivo, pontua Miriam, não é uma criação isolada, mas um “golpe de mestre” (p. 77) provindo de uma linhagem de dispositivos de controle do biopoder. A autora pontua o papel da Costa Rica como laboratório a céu aberto para a pílula anticoncepcional, sob forte investimento dos EUA e da Bayer (que goza do posto de inventora da pílula) e que se repete com a distribuição massiva do Essure nos países latino-americanos, principalmente via hospitais públicos e para as mulheres na fila da laqueadura pelo SUS. O Essure também veio a caráter de “pesquisa” no Brasil, embora o discurso da Bayer, conforme examinado pela pesquisadora, seja de “captar clientes”, ao invés de informar adequadamente sobre o papel de cobaia do dispositivo que as vítimas do Essure, de fato, desempenharam.
Outras camadas desse aspecto público do útero se revelam pela desinformação promovida pela Bayer, conforme a autora, ressaltando a segurança do Essure, e do apoio da classe médica em indica-lo para as pacientes. Na camada da mídia, a autora examina como o dispositivo foi abordado pelo jornalismo como uma tecnologia inovadora, que diminuiria o “atraso” do Brasil frente aos países do hemisfério norte, que já gozavam do Essure há anos em seus sistemas de saúde. A captação dos corpos e pelo sistema médico e midiático é completada pelo descarte completo dessas mesmas vítimas, assim que o Essure se revela incapaz de cumprir suas promessas e ainda capaz de adoecer os corpos em que foi implantado. Como investiga Miriam, as vítimas do Essure são ignoradas ou minimizadas dentro do sistema de saúde, que se recusa a retirar o dispositivo (alegando a complexidade da cirurgia) e classifica suas dores, dilemas, sintomas e histórias como desconectadas do dispositivo. O útero público não pertence ao corpo que o carrega, já que uma das principais lutas dos grupos de vítimas do Essure na internet é ter acesso e permissão para que o dispositivo seja retirado, através da remoção completa do útero.
Por fim, é necessário destacar a abordagem que a autora utiliza do conceito de corpo, essencial e central à sua obra, a partir do pensamento do Corpomídia: aqui, o corpo é ele mesmo um meio de trocas comunicacionais com o ambiente, que o transformam e por ele é transformado. Assim, o Essure não é um dispositivo alienado ao corpo, um espinho a ser retirado, mas encorpa-se, torna-se corpo, e deixa um corpo transformado em seu rastro. O corpo adoecido não pode ser revertido ao seu estado anterior, como bem sabem as vítimas do dispositivo. Suas vidas foram permanentemente despedaçadas pelo Essure e não podem ser reconstituídas apenas com sua retirada. O próprio processo de obter permissão para retirá-lo é, ele mesmo, uma nova encorpação transformadora.
Dessa vez, entretanto, como pontua a autora, é uma encorpação positiva. Os corpos com útero que passam pelos grupos de vítimas do Essure são ali acolhidos, empoderados e transformados. A autora encerra seu percurso de pesquisa pelo conceito de multidão, pelo qual define esses grupos que não possuem líderes ou representantes, cujos membros participam em diversos níveis de compromisso ou interesse e que, mesmo desorganizados do ponto de vista tradicional, conseguem grandes feitos coletivos. As Vítimas do Essure, no conjunto dos grupos, obtiveram uma transformação significativa no acesso às cirurgias de remoção do dispositivo, assim como foram fundamentais para que a Bayer retirasse o dispositivo do país. Graças a seus esforços, a informação sobre os riscos que o Essure traz e o adoecimento aos corpos que ele causa chega aos corpos que dela necessitam, na contramão da narrativa oficial encabeçada pela Bayer de que o produto é seguro, de que as reações são mínimas e de que a cirurgia de retirada é desnecessária e arriscada.
Para a autora, os corpos antes adoecidos pelo Essure vão se tornando novos corpos, empoderados pela multidão e por suas conquistas, capazes de saírem da posição de cobaias do regime farmacopornográfico para a de apontarem um caminho de bioempoderamento e libertação da lógica necrótica do biopoder.
Preciado, B. (2018). Texto junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: SP: N-1 Edições.
1 Carvalho, M. K. (2023). O útero biopolítico. São Paulo, SP: Annablume.
- Andrés Luis SCUTIERI DOS SANTOS
- Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP) – Rua do Patrocínio, 716, Centro – Itu – SP CEP 13300-200. Docente de graduação no CEUNSP, doutor em comunicação e cultura na Universidade de Sorocaba (UNISO), sua pesquisa foca na semiótica peirceana, pragmatismo e em comunidades digitais. Desempenhou estudos sobre o conceito de comunidade em Peirce na Universidade de Indiana, EUA, no Peirce Edition Project.
- https://orcid.org/0000-0002-7633-1872
- andresantos@ceunsp.edu.br
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