Feminicídio no telejornalismo e o fantasma da “mulher honesta”: narrativas que dificultam o enfrentamento à violência Femicide in news tv and the ghost of the “honest woman”: narratives that hinder the resistance against violence

Júlia C. Versiani dos Anjos 

https://doi.org/10.25965/trahs.5989

Este artigo tem como objetivo investigar que soluções são apresentadas para o problema da violência de gênero em rqeportagens sobre o tema do feminicídio no Brasil. Para isto, o presente estudo se baseia em um recorte de uma amostra mais ampla de mais de mil reportagens, concentrando-se, nesta oportunidade, em 14 conteúdos, produzidos entre 2018 e 2020 e veiculados em diversas regiões do país. Identificou-se que acaba por ocorrer uma seletividade em relação a um tipo de vítima, que é exaltada, em detrimento de outras, que são culpabilizadas pela violência sofrida. Explora-se, ainda, a ideia de que esta vítima considerada ideal pode ser interpretada como uma atualização da antiga figura da “mulher honesta”, a qual tem funcionado historicamente como uma poderosa ferramenta do ódio contra a mulher. Desta forma, a narrativa construída nas reportagens, embora se proponha a apresentar soluções, pode dificultar o enfrentamento ao problema do feminicídio e da violência de gênero.

Cet article vise à étudier quelles solutions sont présentées au problème de la violence de genre dans les rapports de journalisme de télévision sur le thème du féminicide à Brésil. Pour cela, la présente étude s’appuie sur une sélection d'un échantillon de plus d'un millier de reportages, en se concentrant, à cette occasion, sur 14 contenus, produits entre 2018 et 2020 et diffusés dans différentes régions de Brésil. Il a été constaté que se produit une sélectivité relative à un type de victime, exalté au détriment d'autres, qui sont blâmés pour les violences. L’article également explore l’idée de que cette victime idéale peut être interprétée comme une actualisation de l'ancienne figure de la “femme honnête”, qui historiquement a fonctionné comme un puissant outil de haine contre les femmes. De cette manière, le récit construit dans les rapports, malgré vise à présenter des solutions, peut rendre plus difficile la résolution du problème du féminicide et de la violence sexiste.

Este artículo investiga qué soluciones se imaginan para el problema de la violencia de género en los informes de periodismo televisivo sobre el tema del feminicidio en Brasil. Para eso, el presente estudio está basado en una selección de una muestra más amplia de más de mil reportajes, centrándose, en esta ocasión, en 14 contenidos, producidos entre 2018 y 2020 y producidos en diferentes regiones de Brasil. Se identificó que ocurre una selectividad con relación a un tipo de víctima, a quien se exalta, en detrimento de otras, a quienes se culpabiliza por la violencia sufrida. También se explora la idea de que esta víctima ideal puede interpretarse como una actualización de la antigua figura de la “mujer honesta”, que ha funcionado históricamente como una poderosa herramienta de odio contra las mujeres. De esta manera, la narrativa construida en los informes, aunque se proponga a presentar soluciones, puede dificultar el enfrentamiento del problema del feminicidio y de la violencia de género.

This work aims to investigate what solutions are presented to the problem of gender violence in the news TV coverage of femicide in Brazil. To this end, the present study follows up on the analysis of a broader sample of more than a thousand reports, focusing, on this occasion, on 14 contents, produced between 2018 and 2020 and broadcasted in various Brazilian regions. The analysis identifies a selectivity in relation to one type of victim, who is praised, to the detriment of others, who are blamed for the violence suffered. The essay also explores the idea that this victim, considered ideal, can be interpreted as an update of the old figure of the “honest woman”, which has functioned historically as a powerful tool of hatred against women. In this way, the narrative constructed in the news reports, while claiming to present solutions, can actually make it more difficult to confront the problem of gender violence.

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Texto completo

Considerações introdutórias

O Feminicídio pode ser entendido como uma forma extrema de violência de gênero, isto é, “violência misógina contra mulheres por serem mulheres situadas em relações marcadas por desigualdade de gênero” (Lagarde, 2010, p. xxii, tradução livre). Especialmente na América Latina, frutificou-se o debate sobre feminicídio como preocupação coletiva e primordial questão de atenção no que diz respeito aos direitos humanos das mulheres. A morte de mulheres em contexto de violência misógina passa a ser vista como um tipo de crime evitável, isto é, passível de prevenção com políticas públicas adequadas.

Deriva de visões como essa a reivindicação de que o debate sobre o tema adentre o âmbito do Direito, como ocorreu no Brasil, em 2015, com a promulgação da Lei do Feminicídio (Brasil, 2015). Na legislação brasileira, o feminicídio é definido como homicídio “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” e essas condições, ainda segundo o texto da lei, englobam duas possibilidades: um contexto de violência doméstica e familiar ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

As contribuições teóricas de Segato (2003) nos mostram que delitos como violência psicológica e física, estupro e feminicídio não devem ser compreendidos por meio de explicações individualistas, mas sim como atos caracterizados por uma forte dimensão enunciativa, isto é, que comunicam algo sobre o espaço de cada um no mundo.

Uma vez que está em jogo uma questão discursiva, a mídia desempenha aqui importante papel. O modo como o feminicídio é enquadrado pode significar uma continuidade desse ciclo de enunciação misógino. A partir deste cenário, justifica-se a relevância de se examinar os efeitos de sentido produzidos pelo discurso jornalístico sobre feminicídio.

Este artigo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo (Anjos, 2023) que se debruça sobre uma amostra de mais de mil reportagens e notícias produzidas entre 2018 e 2020, analisando os diversos efeitos de sentido produzidos pelo discurso jornalístico sobre o tema do feminicídio. O acesso a estes materiais se dá pela plataforma Globoplay, que disponibiliza, na íntegra, todos os conteúdos visuais da TV Globo e afiliadas.

Note de bas de page 1 :

Lista de matérias consideradas: ‘Vidas Contadas - Feminicídios' traz mensagem de esperança com relato de uma sobrevivente. Jornal da EPTV 2ª Edição - Campinas/Piracicaba, 31/05/2019. https://globoplay.globo.com/v/7659425/; Casos de feminicídio alertam para importância da denúncia. PITV 2ª Edição, 13/04/2020. https://globoplay.globo.com/v/8479605/?s=0s; Casos de feminicídio em MS aumentam 17% em relação a 2017. MSTV 1ª Edição – Corumbá, 07/08/2018. https://globoplay.globo.com/v/6928087/; Combate ao feminicídio. MSTV 2ª Edição - Campo Grande, 03/06/2019. https://globoplay.globo.com/v/7664786/?s=0s; Defensoria Pública divulga relatório sobre feminicídios no Rio. RJ2, 06/03/2020. https://globoplay.globo.com/v/8379849/?s=0s; Delegada da Mulher comenta sobre aumento de casos de feminicídios em Goiás. Bom Dia GO, 03/09/2018. https://globoplay.globo.com/v/6991735/; Delegada fala sobre feminicídio e como agir em caso de violência doméstica. CETV 2ª Edição, 17/02/2020. https://globoplay.globo.com/v/8358252/?s=0s; Desembargadora comenta aumento do número de casos de feminicídio na Bahia. Jornal da Manhã, 02/12/2019. https://globoplay.globo.com/v/8131759/?s=0s; Dia Estadual de Combate ao feminicídio é nesta quarta-feira (22). Bom Dia Paraná, 22/07/2020. https://globoplay.globo.com/v/8716764/?s=0s; Em todos os casos de feminicídio em São Luís, a mulher não procurou a polícia. JMTV 2ª Edição, 19/08/2019. https://globoplay.globo.com/v/7855754/?s=0s; Feminicídio em SC: 80% dos casos a vítima tinha uma relação com o autor. Bom Dia Santa Catarina, 23/10/2020. https://globoplay.globo.com/v/8975624/?s=0s; Mulher se finge de morta para escapar de agressor e sobrevive à tentativa de feminicídio. Meio Dia Paraná – Curitiba, 30/07/2019. https://globoplay.globo.com/v/7804067/; Número de casos de feminicídios aumenta no DF. Bom Dia DF, 20/03/2018. https://globoplay.globo.com/v/6592891/programa/?s=0s. Acesso em: 20/10/2021; Números de feminicídios no RS diminuem; Justiça fala de denúncias após medida protetiva. RBS Notícias, 05/02/2020. https://globoplay.globo.com/v/8297824/?s=0s

Para o presente trabalho, optou-se pelo foco, em estudo de caráter qualitativo, em uma amostra mais seletiva de 14 conteúdos1, os quais englobam telejornais de diversas regiões do país (estão presentes na amostra jornais locais dos seguintes estados: Bahia, Ceará, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul). O recorte do corpus se guiou por uma mistura de seleção aleatória com triagem de acordo com a pertinência à análise. O objetivo dessa seleção amostral é investigar, especificamente, quais soluções são apresentadas às vítimas de violência de gênero e sobre que agentes recai a responsabilização.

Vale notar que a discussão aqui proposta não se deterá em detalhes das matérias analisadas, por uma questão de exiguidade de espaço. O foco será discutir que construção de verdades as matérias colocam em discurso, como estão relacionadas a certo ideal de subjetividade feminina, e como podem dificultar o enfrentamento ao problema do feminicídio e à violência contra mulheres, de maneira mais ampla.

A partir de uma compreensão do jornalismo como um lócus privilegiado de produção de sentidos sobre feminicídio, em que saber e poder se articulam, a Análise do Discurso de inspiração foucaultiana foi a metodologia utilizada. De acordo com este olhar metodológico, os discursos são tratados como um modo de produção social: “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (Foucault, 2008: 55).

Embora a metodologia foucaultiana não tenha sido desenvolvida para tratar dos fenômenos midiáticos, a proposta é perfeitamente aplicável para se pensar a comunicação em geral e também o telejornalismo em específico, sobretudo no que diz respeito à produção de subjetividade e à construção de verdade desempenhada por esse tipo de discurso (Coutinho & Maia, 2010).

Nesse sentido, identificou-se que acaba por ocorrer uma seletividade em relação a um tipo de vítima, que é exaltada, em detrimento de outras, que são culpabilizadas pela violência sofrida. A discussão aqui proposta explora a argumentação de que a vítima considerada ideal nestas narrativas pode ser interpretada como uma atualização da figura da “mulher honesta”, expressão empregada na legislação brasileira, desde as Ordenações Filipinas até o início do século XXI, para restringir a penalidade pelos crimes de violência apenas aos atos cometidos contra certos tipos de mulheres, consideradas idôneas. Propõe-se, ainda, que o ideal de “honestidade” feminina se consolidou, ao longo do tempo, como uma poderosa ferramenta do ódio contra a mulher, com pelo menos três grandes funcionalidades: separar, culpabilizar e disciplinar.

Resultados de análise

Uma matéria da amostra é especialmente reveladora para demonstrar a tônica do tratamento dado ao feminicídio pelos telejornais analisados. A reportagem “Mulher se finge de morta para escapar de agressor e sobrevive à tentativa de feminicídio”, do Meio Dia Paraná – Curitiba, apresenta uma celebração da atuação policial, a qual serve, de acordo com a linha argumentativa da reportagem, como um incentivo para que mulheres se sintam encorajadas a denunciar violências sofridas.

O curioso é que essa reportagem narra um crime que aconteceu em 2010 e apenas teve resolução (entendida como a prisão do agressor) em 2019. Ou seja, o fato de que o feminicida ficou foragido por quase dez anos não impede que a atuação da autoridade policial seja exaltada e que o dever de ação seja direcionado às vítimas: “então por isso é importante as mulheres continuarem denunciando, né?”, pergunta a repórter ao delegado à frente do caso. O profissional dá sua opinião sobre qual seria “a única forma” para que esse crime acabe. A resolução para o problema do feminicídio, de acordo com esse ponto de vista veiculado, passaria por três pontos: a polícia civil prendendo, a imprensa livre divulgando, e as mulheres prestando queixa ao menor sinal de violência.

É interessante notar que o delegado concede informações importantes sobre o feminicídio, como o fato de que se relaciona ao ódio à mulher, de que é um crime progressivo e de que a violência contra a mulher precisa encontrar uma barreira do Estado para que não chegue ao resultado de morte. Entretanto, a natureza exata dessa “barreira do Estado” é uma questão importante. Poderíamos falar de uma barreira extensiva, composta por elementos de qualidade diversa, atacando múltiplos pontos da questão: proteção e apoio físico, patrimonial e psicológico às vítimas, incluindo casas de acolhimento, programas de distribuição de renda e empregabilidade, atendimento terapêutico etc. Do ponto de vista do agressor, o Estado deve garantir que ele seja responsabilizado civil e criminalmente, podendo impor uma série de medidas punitivas, além da prisão, como o comparecimento a atividades educacionais que visem sua reintegração na sociedade. Na fala do delegado, entretanto, a “barreira do Estado” parece estar circunscrita à atuação policial e, mais do que isso, a uma atividade policial em sentido bem estrito: a prisão.

Além disso, cria-se um cenário em que a procura da mulher pela autoridade policial e a tomada de ciência dessa autoridade sobre o crime será necessariamente um divisor de águas. Essa visão dos fatos, contudo, não encontra guarida no próprio caso narrado, pois o agressor ficou quase dez anos foragido da polícia, com um mandado de prisão em aberto. Por mais empenhados que estivessem os investigadores, e por mais fé que qualquer profissional tenha em seu trabalho, um dos poucos consensos existentes entre diversas áreas de atuação é que não é aconselhável prometer resultados que não se sabe se poderão ser cumpridos. Nas reportagens que analisamos, contudo, é constante a promessa às mulheres de que, se elas procurarem a delegacia, seus problemas terão solução.

A difusão dessa crença já seria problemática por ser potencialmente uma falsa promessa que gera frustração e indica falsos caminhos para a resolução de um problema que está longe de ser resolvido. Apresenta, ainda, outra consequência: vista como verdade, torna difícil compreender por que as mulheres não denunciam. Se há uma solução facilmente disponível às mulheres, por que elas não buscam por ela?

A partir das matérias selecionadas para análise, foi possível observar que o discurso de muitas das fontes consultadas e, também, de muitos dos jornalistas sobre a questão narrada apresenta uma concepção equivocada sobre o próprio modo de funcionamento da violência contra a mulher, que não entende que a dificuldade de sair de uma relação violenta é inerente ao próprio processo, portanto justamente um dos pontos mais importantes da atuação do Estado.

Essa falta de entendimento sobre a particularidade do processo de violência de gênero se manifesta sobretudo em casos em que a mulher demora a registrar ocorrências contra o marido ou quando manifesta a vontade de não seguir com o processo. Nessas ocasiões, a compreensão sobre a complexidade da situação da mulher vítima de violência e a avaliação sobre modos alternativos de colaboração estatal dá lugar a uma responsabilização quase exclusiva da vítima, obliterando as formas pelas quais agentes públicos podem atuar neste cenário. A título de exemplo, podemos citar falas como “[a mulher] amarra nossas mãos” e “o Estado não pode fazer nada” (Casos, 2018) – manifestações como essa ignoram completamente toda a rede de proteção que deveria ser concedida a uma mulher vítima de violência e vai muito além das medidas restritivas de liberdade direcionadas ao agressor.

Ao concentrar-se na responsabilização única e exclusiva da vítima, sem perceber os pontos de atuação estatal, constrói-se uma ideia de que a mulher é o problema. Longe de mera observação da realidade, essa noção é, em si, um juízo de valor baseado em concepções falhas sobre como funciona a violência contra a mulher. Para não incorrer em um equívoco como este, é de grande valia o conceito de Ciclo da Violência, uma construção teórica desenvolvida pela pesquisadora Walker (1979), que demonstra que a violência doméstica não se resume ao momento da agressão física e colabora para compreender por que as mulheres têm dificuldade em deixar a relação violenta.

O ciclo é constituído por três fases: primeiro um aumento de tensão, depois a agressão física e, então, um período em que o agressor se desculpa, demonstra gentileza e remorso e faz promessas de mudança. Por vezes, esta terceira fase é composta apenas por um momento de não-violência, mas ainda assim serve para reforçar a ideia de que o relacionamento pode melhorar, até o momento em que a tensão volta a aparecer e o ciclo se inicia novamente (Feminicídio, 2020).

Embora nem todos os casos sigam perfeitamente um modelo como este, a noção de ciclo é útil para pensar, uma vez que transmite a ideia do porquê é difícil para a mulher sair dessa situação. Ainda segundo Walker (1979), vivendo nesta realidade, a vítima desenvolve o pensamento de que nada do que fizer será efetivo para escapar do controle do agressor, então passa a acreditar que o melhor que tem a fazer é buscar manejar a situação de dentro. Após repetidas agressões físicas e psicológicas, ela se sente culpada, naturaliza a violência como parte do relacionamento e não se percebe como capaz de viver uma vida diferente. Portanto, a dificuldade das mulheres em sair dessa situação é uma parte esperada da reação de uma pessoa a um contexto de violência. Não é um “problema” em si, é parte do problema da violência de gênero e um dos fatores que a torna tão delicada e difícil de combater.

Nesse sentido, buscar uma mudança nesse comportamento e na percepção dessas vítimas é parte integral do enfrentamento à violência, porém é um processo complexo, que pode ser demorado e difícil, e certamente não será súbito ou linear. Pensando nisso, chega a ser um contrassenso dizer que “não se pode fazer nada” se a mulher apresenta dúvida em algum momento. Como não se pode fazer coisa alguma, se vencer a barreira da hesitação é justamente um dos elementos centrais dessa atuação? Este discurso permite que se encontrem falsos culpados para os problemas e se exima de responsabilidade agentes de Estado, que poderiam, de fato, atuar e contribuir para o cenário.

Em alguns pontos, a culpabilização da vítima por parte dos jornalistas chega a ser tão intensa, que as mulheres são acusadas de serem cúmplices da própria agressão sofrida. Um telejornal, por exemplo, faz um “alerta às mulheres para que não sejam coniventes com esse tipo de violência” (Feminicídio, 2020). Outro questiona: “não existe uma certa tolerância exagerada, muitas vezes, das mulheres?” (Número, 2018). Mais uma vez, as dificuldades inerentes à luta contra a violência de gênero são vistas como um problema exclusivo da vítima, de sua personalidade, e não como parte do processo de enfrentamento a essa violência, causado justamente pelas agressões, e não pela vítima.

O que se observa é que o foco de interlocução é quase sempre na mulher, e não no agressor ou em outros agentes, e não há cerimônia alguma em se fazer avaliações e indicar erros na conduta dessas mulheres violentadas, já fragilizadas. Se ela jamais denunciou, é “conivente”, “tolerante”. Mesmo se ela denunciou, entretanto, ainda não está imune de julgamentos: ela “demorou”! É exatamente o que diz uma repórter, enquanto se aproxima da casa de uma vítima para entrevistá-la:

Demorou. Depois de quinze anos sofrendo agressões do então marido, a Solange conseguiu criar forças e coragem para sair de casa e mudar essa história. A mulher frágil e dependente descobriu que a experiência dela poderia ajudar outras mulheres. E hoje a Solange tem força de sobra para encorajar quem ainda tá vivendo o que ela conseguiu deixar pra trás (Defensoria, 2020).

Após emitir juízo de valor sobre o tempo de que a vítima precisou para sair do ciclo da violência, a repórter também afirma que Solange seria uma “mulher frágil e dependente” que “conseguiu criar forças e coragem”. Neste ponto de vista, toda a resistência de quinze anos vivendo em uma realidade de tortura física e psicológica são desconsiderados. Enxerga-se apenas o momento a partir da denúncia como corajoso, ignorando sua luta pessoal até aquele momento. Além de invalidar toda a história pregressa da mulher, essa narrativa representa o ponto de virada como um passe de mágica, que veio do nada. De acordo com essa representação, a “força” e a “coragem” simplesmente brotaram de Solange, após quinze anos de fraqueza.

Esse modo de apresentar a questão também despreza um fato muito importante – que, inclusive, foi citado na própria reportagem, ao afirmar que uma em cada três agressões acontece justamente quando a mulher percebe os problemas do relacionamento e tenta sair deste, porém o homem não aceita. Não se trata, portanto, de mero medo infundado, fragilidade, dependência, falta de coragem e de força: muitas vezes, a violência ocorre exatamente quando a mulher tentou agir.

Ainda assim, é extremamente comum em diversas matérias analisadas o uso da noção de “coragem” para se referir às vítimas consideradas corretas e exemplares, ficando implícito – ou, por vezes, bastante explícito – um desprezo às demais, compreendidas como fracas, covardes, que atrapalham o trabalho da polícia e, assim, se tornam ao menos parcialmente, culpadas pelo problema: “espero que as mulheres que estão assistindo realmente possam criar coragem, acreditar na polícia, nós estamos aqui para defendê-las. A impunidade vai começar a partir do momento em que elas não denunciarem”, diz uma delegada entrevistada na matéria “Delegada da Mulher comenta sobre aumento de casos de feminicídios em Goiás”, do Bom Dia GO (Delegada, 2018) você só tem que ter coragem e denunciar”, afirma uma vítima na reportagem “Em todos os casos de feminicídio em São Luís, a mulher não procurou a polícia”, do JMTV 2a edição (Em todos, 2019).

O discurso telejornalístico, deste modo, busca indicar um caminho ideal a ser seguido pela mulher vítima de violência: ela deve vencer sozinha seu estado de medo, fazendo brotar um ato de bravura, que se materializa na denúncia das agressões sofridas à autoridade. Toda a solução se vincula à força desse místico sentimento de coragem – quem precisa de independência financeira, estabilidade emocional, apoio familiar? – e ao ato de depositar sua plena confiança no aparelho jurídico-policial, visto como ponto ápice da luta contra a violência. A vítima que não se encaixa nestes parâmetros se torna o problema.

Diante de tais problemáticas, é importante lembrar que o ponto de vista do jornalismo não se encontra isolado do ambiente social – ao contrário, é produzido e colabora para produzir uma estrutura social em que o feminicídio apenas pode aparecer dentro de determinados esquemas de inteligibilidade. Nesse modelo de apreensão, o papel do Estado está circunscrito a determinados limites, enquanto outras formas de amparo à vítima e sua família são empurradas para fora da arena discursiva. Mesmo quando as entrevistas conduzidas com essas pessoas dão um eloquente testemunho sobre a urgência de medidas como essas, elas raramente despontam no discurso.

Além disso, o modo como o jornalismo se propõe a direcionar a conduta de mulheres vítimas de violência está relacionado à maneira como se enxerga, socialmente, a categoria vítima. No próximo tópico, discutirei, especificamente, que verdades difundidas socialmente sobre pessoas que sofrem agressões influenciam para a conformação de pontos de vista como os narrados até aqui. Discorrerei, ainda, sobre quais são as consequências sociais deste discurso, especialmente no que diz respeito à interseção entre vitimização e gênero, que dificultam o enfrentamento ao problema do feminicídio e a defesa dos direitos humanos das mulheres.

Discussão: a ideia de “vítima ideal” e o fantasma da “mulher honesta”

No âmbito dos chamados estudos sobre vitimologia, teve início uma discussão sobre o papel das vítimas no crime e na violência, argumentando-se que, em muitos casos, a vítima compartilha responsabilidade pelo crime que sofre (Berns, 2004). Por exemplo, acreditava-se que, no crime de estupro, a vítima deveria demonstrar resistência ao máximo de suas capacidades, ou seria parcialmente responsável pelo resultado.

Estes estudos também se associam à ideia de que o governo pouco pode fazer para reduzir o crime, cabendo aos indivíduos cuidar de si próprios. Outro motivo é o custo: pedir que as vítimas se esforcem é mais econômico do que montar uma estrutura estatal para combater o problema. Assim, se promete uma redução da criminalidade com pouco custo ao Estado – embora uma pesada contrapartida por parte do indivíduo.

Quando o tema da vitimização se apresenta no discurso midiático, então, conjecturar o que a vítima deveria ter feito para prevenir ou interromper a agressão se torna pauta de destaque e, por vezes, como indica Berns (2004), o tom assume conotação bastante hostil: mulheres chegam a ser explicitamente culpadas por permanecerem em relações abusivas ou por terem supostamente provocado o homem.

Há, também, um discurso aparentemente mais gentil, associado à ideia de “empoderamento feminino”, que aconselha sobre formas de identificar e sair de relacionamentos violentos, encorajando mulheres a tomar controle de suas vidas. Nestes casos, porém, acredita-se ainda que a vítima deve aceitar a responsabilidade de solucionar o problema da violência, que dependeria delas. Boyle (2004) igualmente nota que muitos produtos midiáticos têm como interlocutor a mulher vítima de violência, e se dirigem especificamente a ela, colocando ênfase na ideia de que seria sua responsabilidade dar fim à violência.

Esta concepção parte do princípio equivocado de que é possível prevenir agressões e identificar sinais de comportamento violento nos primeiros momentos de um romance. Coloca-se como dever da mulher a obrigação de estar atenta a quaisquer atos suspeitos e até mesmo deixar de iniciar um relacionamento com base nessas suspeitas. Logo, meramente por estarem nessas relações íntimas em primeiro lugar, já se considera que houve uma falha da parte delas. Trata-se de uma perspectiva de prevenção de crime que se baseia em uma culpabilização da vítima, apagando a necessidade de mudança social e de criação de políticas públicas, assumindo que o suporte a essas mulheres está plenamente disponível.

Este cenário se coaduna intensamente com o que se observou na presente pesquisa. Foram identificados diversos enunciados concentrados nas atitudes da vítima, indicando erros, menosprezando suas dificuldades e ensinando o caminho a seguir. Chega a se afirmar, sem rodeios, que a mulher é responsável, ao menos parcialmente, pela sua morte ou pela sua salvação. Há tantos discursos que culpam veladamente a mulher por permanecer em relações abusivas, quanto outros que se concentram na ideia de “força” e “coragem” – mas a vítima apenas ganha esses qualificadores se seguir a cartilha.

Como anteriormente mencionado, as soluções baseadas quase exclusivamente na atitude da vítima ignoram que um dos momentos mais perigosos para as mulheres é justamente quando elas tomam atitudes para tentar deixar o relacionamento. Também é no momento da denúncia que o comportamento da mulher se torna alvo de escrutínio, podendo ser definida como uma vítima “merecedora” ou “não merecedora” (Boyle, 2004; Meyers, 1996).

Note de bas de page 2 :

No original: “the virgin-whore or good girl-bad girl dichotomy”.

Meyers (1996) indica que, numa tentativa de explicar a violência de gênero, o jornalismo costuma culpar ou a vítima ou o agressor, e a definição de qual dos dois receberá o foco está em função de uma ideologia de supremacia masculina que divide mulheres de acordo com a dicotomia “virgem-vadia” ou “boa garota-garota má” (Meyers, 1996, p. 53, tradução livre)2. As “boas mulheres” são aquelas consideradas “verdadeiramente inocentes”, que de fato merecem o estandarte de vítimas, enquanto as outras são vistas como tendo causado ou provocado seu sofrimento. Dessa forma, a cobertura de imprensa serve como um aviso à população feminina sobre as fronteiras do comportamento apropriado – e a punição para transgressão.

Mulheres idosas e crianças geralmente são colocadas na primeira categoria, de vítimas inocentes, pois presume-se que são vulneráveis. Quando o caso envolve atos de violência particularmente extremos ou grotescos também podem colaborar para absolver a mulher. Excetuando-se estes casos, há grandes chances de que a vítima seja vista de alguma forma como culpada pela agressão sofrida: ela estava onde não deveria estar, ela se arriscou demasiadamente, ela não tomou as precauções necessárias etc.

Note de bas de page 3 :

No original: “no woman is safe from the threat of male violence, just as no woman deserves to be blamed for having been battered, raped, or otherwise abused”.

Embutido neste tipo de pensamento está a ideia, bastante questionável, de que as “boas garotas”, aquelas que não transgridem as fronteiras do comportamento socialmente aceitável, estão seguras, quando a realidade é que “nenhuma mulher está a salvo da ameaça da violência masculina, assim como nenhuma mulher merece ser culpada por ter sido espancada, estuprada ou abusada de outra forma” (Meyers, 1996: 67, tradução livre)3.

É importante destacar que a visão que delimita o problema da violência como questão individual colabora para ensinar às mulheres qual seria o seu lugar na sociedade, a partir de uma concepção redutora e confortável sobre o fenômeno. Esta perspectiva parte do princípio (falso) de que, caso tome todas as precauções, uma mulher consegue evitar a violência.

Note de bas de page 4 :

A palavra é aqui utilizada para se referir ao trabalho simbólico de se controlar o acesso a algo, uma categoria ou status, avaliando quem pode estar “dentro” e quem deve ficar “fora”.

Esta ideia de que a mulher pode prevenir a violência se mostrou amplamente presente na amostra analisada e pode ser entendida como uma manifestação da misoginia. Afinal, vivemos um cenário em que a vitimização é vista com suspeita, e a conquista do status de vítima ideal é extremamente escassa, mas ainda existe, de acordo com certos critérios. E podemos argumentar que o ódio à mulher é justamente aquilo que influi nessas regras sobre a vitimização adequada, aquilo que faz o trabalho de gatekeeping4, determinando quem está de cada lado da fronteira.

É exatamente neste sentido que Manne (2018) enxerga a misoginia: um ódio que auxilia na manutenção da ordem patriarcal – entendida como um sistema de dominação entre vários, como o racismo, classismo, homofobia, entre outros. A misoginia, então, é manifestação central da ideologia patriarcal, na medida em que cumpre uma função política de conformação à ordem. Uma vez que a manutenção do status quo necessita que mulheres sigam determinadas regras, o ódio misógino agirá especialmente como punição àquelas que violam, de alguma forma, as expectativas patriarcais.

Note de bas de page 5 :

No original: “naïve conception”.

Deste modo, a misoginia não se faz presente apenas no momento de um feminicídio, pelas mãos de um agressor, mas é o que torna esse cenário possível e ainda garante que, muitas vezes, a mulher continue sendo violada mesmo após a morte. Manne (2018: 32, tradução livre) chama de “concepção ingênua”5 aquela que enxerga a aversão à mulher como propriedade de agentes individuais, evidentemente agressivos e violentos, e se direcionando a mulheres simplesmente por serem mulheres. Para a autora, é mais propício entender a misoginia como propriedade do ambiente social, que atinge mulheres por serem mulheres em um mundo dos homens, não por serem mulheres na mente de um homem.

Por esse motivo, a autora observa, ainda, que a hostilidade antifeminina não atinge a todas indiscriminadamente, buscando sua eliminação. Na verdade, entendendo o ódio à mulher como fenômeno político, essa forma de manifestação seria dispensável à manutenção da ordem patriarcal:

Note de bas de page 6 :

No original: “it would make little sense in view of the aims of patriarchal ideology to try to rid the world of women— or even, in any straightforward sense, to relegate women to the ghetto. Women are thoroughly integrated into prototypical patriarchal households, where they are tasked with a wide range of critical domestic, social, emotional, as well as (hetero)sexual, services. Such women are too useful to the dominant for all women to be dispensable”.

(...) faria pouco sentido em vista dos objetivos da ideologia patriarcal tentar livrar o mundo das mulheres – ou mesmo, em qualquer sentido direto, relegar as mulheres ao gueto. As mulheres são totalmente integradas em famílias patriarcais prototípicas, onde são incumbidas de uma ampla gama de serviços domésticos, sociais, emocionais e (hetero)sexuais. Tais mulheres são úteis demais para os dominantes para que todas as mulheres sejam dispensáveis (Manne, 2018: 53, tradução livre)6.

Portanto, as formas mais evidentemente violentas da misoginia não necessitam agir sobre todas as mulheres para obterem o efeito desejado de manutenção da ordem. A brutalidade tenderá a recair sobre mulheres vistas como insubordinadas, negligentes, descontroladas, ou sobre aquelas que assumem posições de poder e autoridade sobre os homens, e até mesmo as que evitam ou se negam a exercer funções de serviço orientadas para a classe masculina.

Observar a existência de modulações na misoginia, contudo, não anula o fato de que toda mulher é potencialmente vulnerável a ameaças e punições misóginas. Afinal, estamos falando de uma aversão que é propriedade do ambiente social, e que pode se manifestar por diversas formas que Manne (2018, p. 68) chama de down girl, expressão que diz respeito a rebaixamento. Esse movimento pode incluir infantilização, animalização, demonização, humilhação, depreciação ridicularização, zombaria, calúnia, difamação, hipersexualização ou dessexualização, silenciamento, isolamento e culpabilização.

Nesse sentido, até mesmo uma mulher que é vista como modelo ideal está em posição precária, passível de ser rebaixada de anjo a demônio ao cometer o menor “erro” – do ponto de vista da ideologia patriarcal. Também ocorre que mulheres sejam frequentemente tratadas como intercambiáveis e obrigadas a pagar pelos supostos pecados de outras.

Ainda assim, Manne (2018) destaca a força da operação pela divisão, que seria, segundo ela, uma função primária e manifestação constitutiva da misoginia: enquanto se elogia as “boas mulheres”, se pune as “más”, policiando o comportamento feminino. Esse movimento não faz, porém, com que a misoginia seja um fenômeno secundário – é primordial para a manutenção das estruturas. Na verdade, essa atuação por meio da divisão é extremamente efetiva e ainda colabora para dificultar que seus efeitos sejam sentidos e questionados amplamente. Isso porque o sistema de condenação/punição funciona conjuntamente com um sistema de exoneração/recompensa: enquanto persegue as desviantes, reforça a conformidade de gênero para as demais.

Note de bas de page 7 :

No original: “We should also be concerned with the rewarding and valorizing of women who conform to gendered norms and expectations, enforce the “good” behavior of others, and engage in certain common forms of patriarchal virtue- signaling— by, for example, participating in slut- shaming, victim- blaming, or the Internet analog of witch- burning practices”.

Portanto, além de observarmos a hostilidade e a violência brutal contra mulheres, “também devemos nos preocupar com a recompensa e valorização das mulheres que se conformam às normas e expectativas de gênero” (Manne, 2018, p. 192, tradução livre)7. A agressão assassina e o elogio pela “virtude” ou pelo “bom comportamento” que está de acordo com a ideologia patriarcal são duas faces da mesma moeda. A culpabilização da vítima não deixa de ser uma forma pela qual uma mulher pode sinalizar o erro de outra e, então, diferenciar-se desta, promovendo a si mesma e colocando-se como modelo a ser seguido.

Especificamente no caso da vitimização, e no contexto brasileiro, podemos observar que houve, ao longo da história, uma operação da misoginia exatamente neste sentido de separação entre “boas” e “más”, de modo a conceder a ilusão de que as “virtuosas” estariam protegidas e justificar a agressão contra as “depravadas”. Trata-se da figura da “mulher honesta”, expressão empregada na legislação brasileira, desde as Ordenações Filipinas até o início do século XXI, para restringir a penalidade pelos crimes de violência sexual apenas aos atos cometidos contra certos tipos de mulheres, categorizadas de acordo com seu comportamento sexual.

As Ordenações Filipinas foram um conjunto de legislações impostas por Portugal ao Brasil Colônia, mas que vigorou, em matéria penal, até 1831. Um de seus dispositivos garantia que se um homem casado achasse sua mulher em adultério, licitamente poderia matá-la (Livro V, Título XXXVIII). O adultério era, portanto, um indicativo de que a mulher em questão estaria na categoria das “más” e, de acordo com essa mentalidade, a violência contra ela estava justificada. Já em outros pontos do diploma, surge o termo “honesta”, agora diferenciando as mulheres que mereciam proteção contra agressões. No Livro V, Título XVI, informa-se a penalidade para o homem que “entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem, ou viúva honesta, ou escrava branca de guarda”. Chama a atenção a hierarquização colocada pela letra da lei: a mulher virgem é o objeto de proteção prioritária; secundariamente, temos a viúva, que não é mais virgem, mas merece amparo se tiver conduta marcada pelo recato; por fim, menciona-se a escrava branca de guarda. A mulher negra escravizada nem chega a ser mencionada aqui, o que demonstra o quanto a ideia de honra feminina é racialmente excludente.

Note de bas de page 8 :

Por exemplo, no artigo 215, originalmente, se lia “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Após a mudança iniciada em 2003, passou a constar apenas o termo mulher, sem a qualificação honesta: “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”. Vale notar, ainda, que, em 2009, a lei foi novamente alterada para dar conta do fato de que não são apenas as mulheres a serem vítimas deste tipo de crime. A redação do artigo passou a ser, então: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima” (grifos da autora).

O termo “mulher honesta” – e o entendimento sobre o comportamento ideal da mulher análogo a essa expressão – permaneceu presente na legislação até o início do século XXI. Desde o Código Criminal do Império, os dispositivos que abordavam crimes sexuais costumavam referir-se ao agravo cometido contra “mulheres honestas”. O Código Penal de 1940 (que segue em vigor atualmente) também apresentava essa expressão em seus artigos 215, 216 e 219 (referentes a estupro, atentado ao pudor e rapto, respectivamente), porém a referência à honestidade foi retirada a partir de um projeto de lei de 2003 (Lage & Nader, 2013)8.

Como se poderia esperar, em nenhum momento foi utilizada a expressão “homem honesto”, segundo nota Cortês (2013), até porque a desonestidade era vista por ângulos diferentes de acordo com o gênero: um homem honesto era aquele que tinha ofício e que não praticava atos ilícitos como roubar ou chantagear, enquanto a mulher era considerada honesta em razão de sua vida sexual, que deveria ser restrita ao leito conjugal e modelada por pudor.

Embora a definição legal de estupro na atualidade prescinda dessa “exigência”, a “lógica da honestidade” encontra-se sedimentada, fazendo com que os julgamentos de estupro operem, ainda, uma separação entre mulheres (Andrade, 2007). As mulheres que, de acordo com a moral social, não são dignas, ou as que tomaram atitudes consideradas erradas, em larga medida, são abandonadas pelo sistema de proteção.

Percebe-se, então, que o ideal de “honestidade” feminina se consolidou, ao longo do tempo, como uma poderosa ferramenta, com pelo menos três grandes funcionalidades: separar, culpabilizar e disciplinar. Primeiro, divide-se mulheres entre “boas” e “más”, de acordo com sua sexualidade, serviço e fidelidade a um homem, parâmetros diferentes daqueles designados aos cidadãos masculinos. Em segundo lugar, concomitantemente à divisão de mulheres, se utiliza o valor da “honestidade” para justificar a agressão contra muitas delas, que, por algum motivo, sejam colocadas na categoria de “desonesta”. Isso é o equivalente a culpar o comportamento da vítima pela agressão sofrida por ela. Neste processo, está presente ainda o terceiro elemento: com essa divisão e punição, também se fomenta uma lógica disciplinadora de corpos e sujeitadora, tanto no sentido de submissão, quanto no de criação de subjetividades.

As mulheres são ensinadas que devem regular sua conduta (e das outras também, sempre que possível) com atenção e desvelo, submetendo-se e servindo a um propósito maior que elas, ou sofrerão as consequências. Quando se encontram do “lado certo”, lhes asseguram que são superiores às demais e que estarão seguras. O problema é que a posição de “honestidade” é definida pelos valores patriarcais e não pelas próprias mulheres, e envolve uma miríade de regras e relações de poder, o que a torna instável e movente: a qualquer momento uma mulher pode transitar entre categorias.

Após a análise do material compilado ao longo da presente pesquisa, foram encontrados elementos suficientes que comunicam sobre a presença desses três movimentos – separação, culpabilização e disciplinamento – em operação nas notícias de feminicídio, embora de uma maneira certamente distinta daqueles registrados em outros contextos e momentos históricos. O fantasma da mulher honesta persiste, mas agora ela não é definida exclusivamente pelo comportamento sexual – o que não necessariamente indica uma evolução progressista.

No contexto analisado, a mulher honesta, que receberá elogios e proteção, é a corajosa, ou seja, aquela que consegue, nas palavras dos telejornais, “vencer o medo”. Já aquela que não denunciou seu agressor ou que voltou atrás na denúncia é desprezada e responsabilizada pela violência sofrida. Por mais que sejam eventualmente bem-intencionados, no sentido de incentivar o ato de denúncia, são enunciados que propiciam a circulação da misoginia, no sentido de separação entre mulheres e conformação de corpos femininos, em que algumas são elogiadas como “corajosas”, “fortes”, “empoderadas”, enquanto outras são etiquetadas como “coniventes”, “medrosas”, “fracas”, “que atrapalham a polícia” e culpadas pela agressão sofrida.

A princípio, a passagem de uma divisão de vítimas pelo comportamento sexual para uma separação pelo ato de denúncia pode parecer mais razoável e inclusiva. Entretanto, pode-se considerar que é comparativamente tão arbitrária, pouco efetiva e injusta quanto. Afinal, contraditoriamente, trata-se de uma perspectiva de proteção de direitos humanos que se baseia em uma culpabilização da vítima e ofensa à sua dignidade, apagando a necessidade de mudança social e de criação de políticas públicas, assumindo que o suporte a essas mulheres está plenamente disponível.

Separar, culpabilizar e disciplinar: três grandes funcionalidades da noção tradicional de “mulher honesta” que continuam valendo para a “mulher-coragem”. A figura da “mulher-coragem”, que emerge nas reportagens, é apresentada como sendo diferente das outras, superior à “fraca”, à “medrosa”, à “conivente”. Ela não é considerada culpada pela violência, porque agiu da forma vista como correta.

Alinhada aos desígnios de nosso tempo, essa vítima idealizada é associada a valores positivos como iniciativa, responsabilização individual, força, decisão e intrepidez: ela salva a si mesma. Porém, a exaltação dessa “mulher-coragem”, como é de praxe em sistemas de gratificação e punição, ocorre às custas das outras, vistas como fracas, faltantes, erradas. À “mulher fraca”, desprezo; à nova mulher honrada, a falsa promessa de proteção. Assim o ódio à mulher continua se fazendo presente, manifestação implacável de todas essas histórias.

Observações conclusivas

O presente artigo iniciou-se com os resultados de análise da amostra concentrada em 14 reportagens sobre feminicídio, produzidas entre 2018 e 2020, em que se buscava apresentar possíveis “soluções” para o problema da violência de gênero. Foi possível perceber que se manifesta uma concepção equivocada sobre o modo de funcionamento da violência contra a mulher, e este falso entendimento prejudica diretamente a capacidade de avaliar caminhos de melhoria do problema identificado. Assim, o discurso dá lugar a uma responsabilização quase exclusiva da vítima, obliterando as formas pelas quais agentes públicos podem atuar neste cenário.

Uma vez que o discurso do jornalismo está diretamente imbricado a relações de poder e saber difundidas socialmente, no segundo tópico do desenvolvimento do trabalho, discutiu-se a tendência a direcionar um olhar julgador às vítimas de violência, especialmente quando essas vítimas são mulheres, das quais é exigida uma conduta ilibada para que sejam incluídas no rol de “vítimas ideais”.

Tal prática de julgamento e separação de mulheres foi associada ao conceito de misoginia entendida como ódio, que não se faz presente apenas no momento de um feminicídio, mas sobretudo como uma manifestação social que age para manter mulheres em posições subordinadas – inclusive tornando possível que, muitas vezes, a mulher continue sendo violada mesmo após sua morte.

Trazendo tal discussão para o contexto brasileiro, é possível observar que houve uma operação da misoginia no sentido de separação entre mulheres “boas” e mulheres “más”, justificando a agressão contra as segundas, por meio da noção de “mulher honesta”, expressão empregada na legislação brasileira, desde as Ordenações Filipinas até o início do século XXI.

Percebe-se, então, que o ideal de “honestidade” feminina se consolidou, ao longo do tempo, como uma poderosa ferramenta, com pelo menos três grandes funcionalidades: separar, culpabilizar e disciplinar. Ainda hoje, o fantasma da mulher honesta persiste, mas agora ela não é definida exclusivamente pelo comportamento sexual. No contexto analisado, a mulher honesta, que receberá elogios e proteção, é a corajosa, ou seja, aquela que consegue, nas palavras dos telejornais, “vencer o medo”. Já aquela que não denunciou seu agressor ou que voltou atrás na denúncia é desprezada e responsabilizada pela violência sofrida.

Contraditoriamente, trata-se de uma perspectiva de combate à violência contra a mulher que se baseia em uma culpabilização da vítima e ofensa à sua dignidade, apagando a necessidade de mudança social e de criação de políticas públicas. Desta forma, a narrativa construída nas reportagens, embora se proponha a apresentar soluções para o problema da violência de gênero, pode dificultar o enfrentamento ao feminicídio e a defesa dos direitos humanos das mulheres.

Espera-se que este trabalho possa funcionar como singela contribuição para o debate sobre o modo mais propício de se abordar o feminicídio, que atue em consonância com o propósito inicial da emergência do termo: a preocupação em garantir às mulheres um dos mais primordiais direitos humanos, a vida livre de violência, tanto física quanto simbólica. É necessário evidenciar que não basta encorajar a vítima a “vencer o medo”, é preciso mais. Quando não conseguimos, como sociedade, salvar uma mulher da aniquilação de seu corpo, o mínimo que temos a fazer é esforçar-nos para não funcionar como mais um elo em uma cadeia misógina de agressão à sua imagem e à sua memória.